quinta-feira, 21 de julho de 2022

Parte do capital se mobiliza contra golpe. É pouco. "Mito" na mira dos EUA



Tenho cobrado aqui e em toda parte que o capital se manifeste em defesa da democracia. O segredo mais mal guardado da República é a conspiração que o presidente Jair Bolsonaro tenta liderar contra as eleições de outubro. Ele ainda não decidiu se busca impedir a realização do pleito ou se mobiliza suas milícias contra o resultado das urnas caso este lhe seja adverso. Até outro dia, havia a certeza de que poucos no Congresso cederiam à sua arenga obscurantista contra o TSE. Hoje, não se sabe. Ciro Nogueira, senador licenciado que serve como chefe da Casa Civil, acompanhou o presidente no espantoso pronunciamento que fez a embaixadores estrangeiros na segunda. Arthur Lira, sócio de Nogueira no Centrão e presidente da Câmara, não soltou um pio contra aquele descalabro. Nada. Ambos assistiram impassíveis ao rompante golpista.

O capital brasileiro que conta tem de dizer, por meio de suas representações, se a democracia é algo que apenas toleram na impossibilidade de ter um ditador amigo no Palácio do Planalto ou se ela é um valor inegociável, de sorte que, diante de uma ameaça à ordem constitucional, só restam a mobilização e o repúdio. Afinal, ou fazem parte do pacto civilizatório ou, então, aceitam piscar para a barbárie na suposição de que esta pode, sob certo ponto de vista, ser útil aos negócios.

E, então, preciso fazer uma indagação a industriais, banqueiros, financistas, gigantes do comércio e dos serviços e empresários rurais: uma ditadura, acompanhada da eventual guerra de todos contra todos, interessa em alguma medida aos investimentos? Não é o empresário eficiente que lucra com o caos, mas o que explora a miséria sem direitos da mão de obra esfomeada. Não é o produtor rural que multiplica seu patrimônio em meio à desordem institucional, mas o madeireiro e o garimpeiro ilegais. Não é o banqueiro que financia um país de clandestinidades, mas o agiota e o pistoleiro. Ou estou enganado?

Sendo assim, então a defesa da ordem democrática não pode ficar restrita à militância oposicionista, à mobilização de uma parcela da população, à imprensa que não se deixou corromper, aos círculos universitários e a entidades de defesa dos direitos humanos. É preciso que o país saiba quem não está disposto a financiar um golpe. Até para que se saiba quem está. Ou alguém imagina, à parte um grupo de bucaneiros que se travestem de empresários, que o rompimento da ordem pode ter lá as suas virtudes para os negócios? Se não imagina, que o interesse objetivo, ainda que não a convicção, deixe claro a Bolsonaro — e a alguns bananas de pijama que o seguem — que é chegada a hora de parar.

SERÁ?
Parece que algo se move. Segundo informa o Estadão, "juristas e empresários articulam um ato pela defesa aberta do sistema eleitoral do País, diante da investida do presidente Jair Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. Dois eventos estão programados para ocorrer na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) no dia 11 de agosto".

Prossegue o jornal:
"Em um deles, entidades econômicas e da sociedade civil se juntam à comunidade jurídica. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) tem feito a articulação com a comunidade empresarial para angariar apoio à pauta, segundo o diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo. A ideia é reunir expoentes de diversos setores e diferentes preferências partidárias em defesa da democracia. Procurada, a Fiesp não confirma participação na articulação".

É um alento que a Fiesp, hoje presidida por Josué Gomes da Silva, esteja empenhada na defesa da democracia, o que não é sinônimo de cor partidária. O que se quer é respeito às regras do jogo.

O outro evento traz de volta à arena pública Celso de Mello, ex-ministro do Supremo e, durante muito tempo, símbolo da temperança técnica na Corte, livre de paixões. No mesmo dia do ato na Faculdade de Direito da USP, Mello leria uma nova "Carta aos Brasileiros", numa reedição do histórico documento de 1977, lido, naquele local, por Goffredo da Silva Telles Jr. O texto repudiava a ditadura militar e cobrava o restabelecimento do estado democrático e de direito.

Nem a manifestação nem o manifesto buscam dividir. Ao contrário: a intenção é somar aqueles que, a despeito das divergências, consideram a democracia inegociável. Um dos articuladores da carta é o jurista Miguel Reale Júnior, um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Como se vê, não se trata de uma manifestação organizada pelo PT e no interesse de petistas. A credencial para se juntar à turma, nos dois casos, é o repúdio ao golpismo e a defesa das instituições.

MOMENTO GRAVE
Bolsonaro pode não ser uma pessoa séria, mas se deve encarar com seriedade o risco que ele representa para o Brasil. Ainda que seus delírios de tiranete não venham a se realizar, é inegável que pode provocar um estrago considerável, condenando o país a alguns anos adicionais de atraso.

A pantomima que estrelou na reunião com os embaixadores serviu para que muitos atores da vida pública percebessem que ele não está blefando quando ameaça com golpe. Seu esforço é dedicado e sincero. Se vai ser bem-sucedido, é outra coisa. Para que não seja, é preciso que a sociedade se mobilize, inclusive os empresários.

EUA
Os EUA, como é evidente, monitoram o que se passa por aqui -- e em toda parte. Na terça, a embaixada emitiu uma nota sobre as eleições no Brasil e seu sistema de votação. Afirmou:
"Como já declaramos anteriormente, as eleições do Brasil são para os brasileiros decidirem. Os Estados Unidos confiam na força das instituições democráticas brasileiras. O país tem um forte histórico de eleições livres e justas, com transparência e altos níveis de participação dos eleitores.
As eleições brasileiras conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo.
Estamos confiantes de que as eleições brasileiras de 2022 vão refletir a vontade do eleitorado. Os cidadãos e as instituições brasileiras continuam a demonstrar seu profundo compromisso com a democracia. À medida que os brasileiros confiam em seu sistema eleitoral, o Brasil mostrará ao mundo, mais uma vez, a força duradoura de sua democracia."

Nesta quarta, foi o próprio governo daquele país a dizer, por intermédio de Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado:
"Eleições vêm sendo conduzidas pelo sistema eleitoral brasileiro, capacitado e já testado, e pelas instituições democráticas com sucesso por muitos anos, então ele é um modelo para nações deste hemisfério e além. Como um parceiro democrático do Brasil, vamos acompanhar as eleições de outubro com grande interesse e expectativa total que sejam conduzidas de forma livre, justa e confiável, com todas as instituições agindo segundo seu papel constitucional."

Não é usual que vozes oficiais dos EUA se manifestem com essa frequência sobre o mesmo assunto. É um sinal de que o monitoramento aponta perigo.

ENCERRO
Democracia não é uma oferta caída do céu, ainda que não queiramos. Ela só existe se quisermos. E só resiste se receber os devidos cuidados.

Hoje, há um golpista na cadeira da Presidência da República. E é preciso agir para que não dê o golpe. O fato de a personagem ser bisonha, primitiva e ridícula não implica que não seja perigosa. Até porque está cercada de outros bisonhos, primitivos e ridículos.

Fiquemos vigilantes. Como deixou claro John Bolton em entrevista recente, de golpe, os EUA entendem. É preciso ficar ligado quando fazem soar o alarme por dois dias seguidos.

Por Reinaldo Azevedo

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