sábado, 9 de julho de 2022

Bolsonaro não reage à morte de Abe, mas fala de seu próprio rancor armado



O presidente Jair Bolsonaro não consegue ter uma reação aceitável, humana e não beligerante nem mesmo quando se manifesta sobre o assassinato de um ex-chefe de Estado. Está focado, como sempre, na guerra interna contra aqueles que considera não seus adversários políticos, mas seus inimigos.

Ao comentar o assassinato de Shinzo Abe, ex-primeiro-ministro japonês, teceu alguns elogios à vítima, mas o foco de sua reação estava em outro lugar. Disse:
"É o preço por lutar pelo seu país. Muitas vezes, ou na maioria das vezes, o inimigo não está lá fora, está dentro da nossa pátria".

Não falava de Abe, mas de si mesmo. Remetia, é óbvio, à facada que lhe foi desferida por Adélio Bispo dos Santos, alimentando teorias conspiratórios sobre um complô das esquerdas ("o inimigo") para matá-lo, coisa já descartada por duas investigações (há uma terceira em curso), e, não há como ignorar, à disputa eleitoral em curso.

Havia poucas horas, em sua "live", Bolsonaro tinha costurado, numa fala frouxa, algumas meias-verdades e uma penca de mentiras inteiras sobre o processo eleitoral no Brasil e uma suposta conspiração para fraudar o resultado das urnas. Evocou, uma vez mais, o alinhamento com as Forças Armadas e disse que vai convocar embaixadores estrangeiros para apresentar supostas provas de que houve fraude nas eleições de 2014 e 2018. Provas que, como se sabe, se existissem, ele teria sonegado da Justiça.

Todas as ocorrências importantes no Brasil e no mundo, percebam, só mobilizam Bolsonaro à medida que servem ou não ou à manutenção do seu poder ou à eliminação dos "inimigos internos". Não existe em seu discurso nenhuma expressão de alteridade. O "outro", como ser autônomo, que independe de sua existência, não interessa e, no seu universo mental, não existe.

O assassinato de Abe choca o mundo e especialmente o Japão, um país que teve, no ano passado, 10 — EU ESCREVI "DEZ" — incidentes com armas de fogo, com apenas uma — EU ESCREVI "APENAS UMA" morte. A taxa de homicídios no país é de 0,25 morte por 100 mil habitantes. No Brasil, com dados de 2021 — e olhem que houve uma queda —, é de 22,3. Corresponde a 89 vezes a taxa japonesa. Nada menos de 76% dos homicídios são praticados por meio de armas de fogo.

Tanto a posse como o porte de armas são proibidos no Japão. Há exceção para os caçadores desportivos, mas há um longo processo até a obtenção da licença — nada menos de 12 etapas. É preciso um atestado médico certificando que a pessoa não representa um risco. E o dono da arma tem de fazer três exames escritos a cada ano. Em 2020, informa o Estadão, havia cerca de 192 mil armas licenciadas no país. A grande maioria era constituída de espingardas e rifles de caça. O número é menor aos de armas registradas no Estado americano do Alabama, que tem uma população cerca de 20 vezes menor do que a do Japão. Tem-se como resultado um dos países mais seguros do mundo. A arma que matou Abe é de fabricação caseira.

É proibido circular em ambientes públicos também com arma branca. Bolsonaro diria que o Japão não "respeita a nossa liberdade" e que se trata de um "povo escravizado".

A propósito: na live golpista desta quinta, ele anunciou sua agenda desta sexta e deste sábado. Hoje, um evento militar. Amanhã, duas marchas para Jesus e um evento em defesa do armamento do povo.

Cheio de orgulho, anunciou:
"Eu sou um entusiasta, né?, do armamento para o cidadão de bem. Nós estamos chegando perto de 700 mil CACs no Brasil (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores). Clubes de tiro: ultrapassamos a cada de 1.600 clubes de tiros no Brasil. E esse números, né?, quando nós começamos, tava na ordem de 800, passamos para 1.600. Só no meu governo, dobramos o número de clubes de tiro no Brasil".

E lembrou em seguida que houve uma queda na taxa de homicídios de 2021, que ele atribuiu ao crescimento da circulação de armas no Brasil. É mentira. É um raciocínio torto. Os números vinham em queda desde 2018. A propósito: em 2020, tinham crescido. A queda se deve a outros fatores. Dado o óbvio e escancarado impacto que o aumento do armamento tem no número de homicídios, a política de Bolsonaro impediu que a queda fosse maior.

Aí dirá o fascistoide que sempre entende tudo pelo avesso e pelo viés de seu rancor e de seu ódio: "Tá vendo? Um Japão tão seguro não impediu um atentando contra o ex-primeiro-ministro".

É verdade. Não impediu. Mas Abe entrará na contabilidade japonesa dos 10 incidentes com armas de fogo, com uma ou duas mortes. Vale dizer: no Japão, o risco de um governante ou membro da elite política morrer à bala é igual ao do cidadão comum. Isso quer dizer democracia na prática.

No Brasil, Bolsonaro estimula o armamentismo, mas anda com um colete à prova de balas e com o maior aparato de segurança que já serviu a um presidente da República.

O Japão é o país que prova, do modo mais eloquente possível, que Bolsonaro está errado.

Por Reinaldo Azevedo

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