sábado, 16 de julho de 2022

Crime político: delegada produz obscurantismo e adivinhação em vazio legal



A Polícia Civil do Paraná — lá onde um grupo de celerados chegou a alimentar o anseio de fundar seu próprio Direito Penal — está usando um vazio legal para produzir obscurantismo também político. Com impressionante celeridade, a delegada Camila Cecconello concluiu a investigação e chegou à conclusão de que, ao matar Marcelo de Arruda, o bolsonarista Jorge Guaranho cometeu crime duplamente qualificado — por motivo torpe e por expor terceiros a risco —, mas sem motivação política. O que dizer sobre a exclusão causal? É simples: se o bolo do aniversariante estivesse decorado com a imagem de Jair Bolsonaro, é provável que Guaranho tivesse entrado para tomar uma cerveja e comer um pedaço da iguaria. Como lá estava a imagem de Lula, Arruda está morto. Mas a delegada descarta a motivação política. É uma piada macabra.

É claro que, de saída, já temos a aplicação de pesos e medidas desiguais em situação idêntica. O Ministério Público Federal denunciou Adélio Bispo dos Santos, que esfaqueou Jair Bolsonaro, com base do Artigo 20, Parágrafo Único, da antiga Lei de Segurança Nacional, a saber:
"Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo."

O desdobramento é conhecido. O criminoso foi considerado inimputável, mas o fato é que o MPF viu no ato de Adélio "atentado pessoal por inconformismo político". No caso de Arruda, a PGR nem havia sido acionada ainda e já descartou: "Não é assunto meu". Vá lá. A Lei de Segurança Nacional não existe mais. E nem tudo foi absorvido pelo Código Penal.

Com o fim da LSN, o CP passou a contar com o Artigo 359-P:
"Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência."

Observem que o texto não inclui a motivação política ou ideológica.

Também não seria possível enquadrar Guaranho na Lei Antiterrorismo (13.260). O Artigo 2º expõe as condutas que ela pune, a saber:
"Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública."

Mais uma vez, a questão ideológica ou filiação partidária não está entre as motivações que caracterizam o tipo. É uma falha evidente da lei. Aliás, tal texto traz uma excludente de ilicitude que dá pano pra manga, num texto notavelmente mal redigido. Lá se lê:
"§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei."

No afã de evitar a criminalização de movimentos sociais, o que é preocupação legítima e correta, produziu-se um texto que se abre para o mar da incerteza. Todo terrorista, no fim das contas, tem uma motivação originalmente reivindicatória. Observem a aberração: na caracterização do crime, não se toca na motivação política; para efeitos de exclusão do ilícito, sim. É uma lei redigida no joelho.

"Mas não se pune 'crimes de ódio' no Brasil, Reinaldo?" Depende. A Lei 7.716 (antirracismo) pune "os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Duas decisões do Supremo ampliaram o seu alcance. Merecerá a mesma sanção a homofobia — discriminação em razão de orientação sexual ou de gênero (isso que Jair Bolsonaro pratica todo dia). O tribunal também igualou a injúria racial a racismo propriamente.

Inciso IV do Artigo 109 da Constituição prevê que os juízes federais processam e julgam "os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União". Não é, obviamente, o caso. Também lhes compete as causas referentes a agressões aos direitos humanos (Inciso V-A).

Até a idade pode ser um agravante no crime de injúria, mas não a filiação política.

Vamos ver:
1: se a delegada Camila Cecconello quisesse evocar uma lei para imputar a Guaranho também o agravante do ódio, não encontraria a lei correspondente;
2: uma coisa é a delegada apontar um vazio legal -- MAS ELA NÃO SE OCUPOU DISSO; outra, distinta, é fazer esta afirmação:
"Para você enquadrar num crime político, na lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito, você tem alguns requisitos, como impedir ou dificultar uma pessoa de exercer seus direitos políticos. Então, é complicado a gente dizer que foi motivado, ou que esse homicídio ocorreu porque o autor queria impedir o exercício dos direitos políticos daquela vítima. A gente analisa que, quando ele chegou ao local, ele não tinha essa intenção de efetuar os disparos, ele tinha a intenção de provocar. É muito difícil analisar os autos, com as provas que nós temos, e dizer que o autor foi até lá, voltou porque queria cessar os direitos políticos ou atentar contra os direitos políticos daquela pessoa. Parece, muitas vezes, mais uma coisa que acabou virando pessoal entre duas pessoas que discutiram, claro, por motivações políticas."

Aí ela se atrapalhou toda e produziu prejulgamento, o que não lhe cabe.

A delegada afirmar que o Guaranho "não impediu" Marcelo de exercer seus direitos políticos soa como piada macabra: afinal, ele está morto porque era petista — e isto resta evidente — e, mais do que direitos políticos, perdeu um outro, que a este antecede: o direito à vida.

Bastaria a ela dizer que o Artigo 359-P do Código Penal não inclui entre as motivações a questão ideológica.

Ocorre que ela parecia ocupada demais com sua tese absurda:
"A gente analisa que, quando ele chegou ao local, ele não tinha essa intenção de efetuar os disparos, ele tinha a intenção de provocar. É muito difícil analisar os autos, com as provas que nós temos, e dizer que o autor foi até lá, voltou porque queria cessar os direitos políticos ou atentar contra os direitos políticos daquela pessoa".

Aí ela já não faz mais trabalho de policial, mas de adivinhação. Pior: descarta a óbvia premeditação do crime. Em vez de apontar o vazio legal — e poderia fazê-lo até em tom de inconformismo —, ela descarta a realidade que grita: se a imagem de Bolsonaro estivesse naquele bolo, Marcelo de Arruda estaria vivo.

Um crime, enfim, político que pede uma definição legal. E não considerações absurdas fora do devido enquadramento legal.

Por Reinaldo Azevedo

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