quinta-feira, 14 de julho de 2022

Deus está morto, golpeado por Lira. E o papel do Supremo e das oposições



Deus está morto no Congresso.

Em seu lugar, foi entronizado Arthur Lira (PP-AL), ex-presidente da Casa, alçado agora a rei das Profundezas. Só o tinhoso comanda os trabalhos. Não há o que Lira não possa fazer. Seus poderes já não são mais deste mundo. Sessão de um minuto? Ele faz? Um dia com mais de 24 horas? Acabou não dando certo, mas ele tentou. Fazer quarta-feira virar sexta ou segunda, isso também. E o que mais vier pela frente.

Os especialistas em gestos corporais e faciais deveriam estudar Arthur Lira e suas expressões. Os olhos estão até um tanto vidrados, apaixonado que está por si mesmo, como Narciso ao se mirar nas águas. Até ele se espanta um tanto, mas nunca pelo fastio. O vencer lhe assanha a disposição para a jogada seguinte, na certeza de que o Céu não é mais o limite — até porque, convenham, há algumas regras por lá.

Como é mesmo? Riobaldo já ensinou tudo direitinho em "Grande Sertão  Veredas". Assim:
"Mas o demônio não precisa de existir para haver -- a gente sabendo que ele não existe aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo."

Pois é. Riobaldo evocava o diabo, mas sua nostalgia era mesmo de Deus, na criação genial de Guimarães Rosa. Lira não. Ele quer é o inferno que Bolsonaro proporciona na Terra, o "sem-fim que nem não se pode ver".

TUDO ILEGAL
Não há uma linha de legalidade no pacote eleitoral de Bolsonaro. É inconstitucional a PEC do ICMS como inconstitucional é esta dos benefícios -- que está também sob o escrutínio do TCU. Será que o Supremo, acionado, vai barrar uma e outra? A minha resposta é "não", num movimento similar àquele feito pela oposição, que votou em favor das PECs no Senado e na Câmara.

Bolsonaro, o diabo menor nessa legião de demônios que hoje está no comando, jogou para tentar atrair o tribunal e as oposições para a armadilha. Vocês já imaginaram as bancadas do PT e do PSB, por exemplo — de Lula e do seu vice, Geraldo Alckmin — a dizer "não" a um auxílio extra de R$ 200 para uma parcela de beneficiários que, com efeito, hoje passa fome? De resto, seria inútil porque o governo conseguiria os 49 votos no Senado e os 308 na Câmara. Agora especulem sobre os efeitos de uma eventual intervenção do Supremo suspendendo os benefícios.

Como costumo brincar, se muitos resistem a ler "O Príncipe", de Maquiavel, porque obra difícil, leia-se, então, ao menos, "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry: não se deve pedir a ninguém que se lance ao mar, não é mesmo? O melhor discurso para Bolsonaro seria aquele em que a oposição votasse contra os benefícios. E certamente teria o Apocalipse a seu favor se a Justiça se encarregasse de cassar as concessões ilegais.

TRAGÉDIA INSTITUCIONAL
Não vai acontecer, e isso é mesmo uma tragédia institucional. Atravessou-se o umbral da desordem, sabe-se lá quando será o retorno, se é que haverá. Lei Eleitoral, Lei de Responsabilidade Fiscal e Constituição... Nada ficou no lugar. Tudo foi jogado no lixo. E o brilho no olhar de Arthur Lira indica que ele pode fazer muito mais. A propósito: cheguei a pensar que este senhor e Ciro Nogueira, os dois cavaleiros do Centrão, não comungariam com um golpe militar, por exemplo. Não penso mais. Acho que aceitariam perfeitamente ser, "mutatis mutandis", o Ranieri Mazzilli e o Auro de Moura Andrade da hora -- em papéis distintos, insisto, mas não menos golpistas.

EMERGÊNCIA E SUPREMO
Do que mais eles são capazes? De qualquer coisa. Coloquem aí o quem é imaginável e que não é também, porque nunca se sabe o que passa pela mente dos perversos. Insisto em que o Supremo vai procurar se afastar de decisões que possam resultar na não concessão dos benefícios previstos pelas PECs, mas nem por isso precisa se deixar arrastar passivamente pela lógica do mal menor -- que, em essência, deve mesmo ser posta em prática.

O que quero dizer com isso? O tribunal certamente será instado a examinar a constitucionalidade da declaração do estado de emergência. Ainda que a medida tenha sido aprovada pelo congresso, nasce corroída pelo desvio de finalidade. A razão única de ser do despropósito é tentar livrar Jair Bolsonaro de uma eventual futura sanção de natureza eleitoral.

SERÁ QUE BENEFÍCIOS MUDAM AS URNAS?
"Será, Reinaldo, que as PECs na boca da urna mudam as eleições?" Algum impacto deve haver. Difícil saber o tamanho. Bolsonaro buscará capitalizar os benefícios e alguma queda no preço dos combustíveis, mas discurso também não faltará à oposição. Por que esperou até agora? Por que pagará os auxílios suplementares até dezembro apenas? Por que não fez antes? De resto, um outro dado deve ser levado em conta: com os pagamentos previstos, a vida do pobre estará longe de ser uma maravilha. Há miseráveis revirando caminhão de lixo. Há uma fatia antes dita de classe média que está comprando feijão quebrado no supermercado ou soro de leite porque não podem pagar pelo leite ele mesmo. Ainda que venham pela frente dois meses de deflação, isso altera tanto assim a qualidade de vida?

"Ah, mas cria dificuldades para Lula vencer no primeiro turno". Prefiro não ficar fazendo adivinhações. Disputa contra governos nunca são um passeio tranquilo nem quando estes seguem as regras no jogo. No confronto em que tudo vale, como se sabe, o limite é o inferno do "sem-fim que nem não se pode ver".

PARA ENCERRAR
E, claro!, falhando tudo isso, ainda há o golpe que Bolsonaro está engendrando com setores do chamado "mundo castrense" -- sim, os militares -- e, não duvido a esta altura, também do Centrão.

Como já se sabe, assim que Lira foi instado pelos deputados a se manifestar em nome da Câmara em repúdio ao assassinato de Marcelo de Arruda, Lira — o dos olhos vítreos — resolveu rememorar o caso Adélio, como se fossem casos comparáveis. Parecia mesmo ser o ventríloquo de Bolsonaro, hoje o seu boneco.

O buraco é fundo. E se pode descer ainda mais.

O inferno é o sem-fim "que nem não se pode ver".

É preciso organizar a resistência com os instrumentos que a democracia oferece.

Por Reinaldo Azevedo

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