terça-feira, 24 de agosto de 2021

Senado deveria barrar Aras. Não vai. Ou: notícia-crime "foge" de Conselho



A Comissão de Constituição e Justiça do Senado sabatina nesta terça o procurador-geral da República, Augusto Aras, que busca recondução ao cargo para um mandato de mais dois anos. Ou nem tanto. Há quem jure que ele está mesmo é de olho comprido naquela vaga aberta no Supremo, com a aposentadoria de Marco Aurélio. Para ela, foi indicado André Mendonça, ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União. A maré não anda favorável a Mendonça, e nada impede que Bolsonaro retire o seu nome e apresente o de Aras — que, sim, seria mais palatável ao Senado. Nesse caso, Lindôra Araújo — aquela que não vê pecados nem ao sul nem ao norte do Equador de Jair Bolsonaro, de quem é amiga — poderia ser indicada para a PGR. Se você pensou aí algo como "Deus nos guarde!", diria que fez bem. Adiante.

Aras será sabatinado tendo em mãos uma boa e uma má notícia. Vamos à boa. Para ele.

O ARQUIVAMENTO
O ministro Alexandre de Moraes, conforme o esperado, recusou a notícia-crime contra ele apresentada pelos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Fabiano Contarato (Rede-ES), que o acusam de prevaricação, omitindo-se de atuar para coibir os crimes cometidos por Bolsonaro, especialmente na sua cruzada contra o sistema eleitoral. Os senadores lembram, por exemplo, que o presidente é investigado em dois inquéritos -- foi incluído no das fake news e é também alvo de outro, que apura quebra de sigilo de investigação sigilosa conduzida pela PF -- sem a participação da PGR. Apontam ainda a omissão de Aras no caso do estímulo do mandatário a atos antidemocráticos, atentatórios à democracia e ao estado de direito.

Como afirmei no programa "O É da Coisa", Moraes tendia a rejeitar a abertura de investigação, como fez, porque as condutas apontadas pelos senadores — que, a meu ver, aconteceram — caracterizam muito mais crime de responsabilidade e poderiam embasar um pedido de impeachment no Senado.

O crime de prevaricação, conforme o define o Artigo 319 do Código Penal, consiste em
"Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal"

Com o que se tem, isso não pode ser suficientemente demonstrado. Escreve o ministro:
Observe-se, por fim, que a representação, genericamente, indicou eventual incidência do crime de responsabilidade previsto no artigo 40, item 2, da Lei nº 1.079/50, afirmando que o "comportamento desidioso do Procurador-Geral da República" e o "conjunto de fatos" levam a conclusão de que o "Procurador-Geral da República procedeu de modo incompatível com a dignidade e com o decoro de seu cargo". Eventual análise dessa imputação, entretanto, deverá ser realizada no juízo constitucionalmente competente: Senado Federal.

Moraes está correto. A íntegra de sua decisão está aqui.

A MÁ NOTÍCIA E O ROLO ARMADO
Mas a sabatina de Aras -- que será aprovado -- também se dá num dia ruim, com um rolo bastante nebuloso havido no circuito Conselho Nacional do Ministério Público-PGR. E a história não é nada edificante. E também isso rendeu uma ação no Supremo -- nesse caso, um Mandado de Segurança, cujo relator é Dias Toffolli. Vou apelar à cronologia dos acontecimentos para melhor esclarecer o imbróglio.

1 - No dia 9 de agosto, um grupo de subprocuradores aposentados entrou com uma notícia-crime contra Aras no Conselho Nacional do Ministério Público. Acusam:
"O procurador-geral da República Augusto Aras por si próprio, ou por intermédio de pessoa de sua mais estreita confiança, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, vem, sistematicamente, deixando de praticar, ou retardando, a prática de atos funcionais para favorecer a pessoa do presidente da República ou pessoas de seu entorno".

A petição é assinada por Cláudio Lemos Fonteles, Wagner Gonçalves, Álvaro Augusto Ribeiro Costa e Paulo de Tarso Braz Lucas, todos subprocuradores aposentados, e também pelo juiz aposentado do TRF-4 Manoel Lauro Volkemer de Castilho.

Sim, também o Conselho Nacional do Ministério Público pode apurar eventuais crimes cometidos pelo procurador-geral. E aí começa o imbróglio.

2 - O que dispõe o Inciso X do Artigo 57 da Lei Complementar 75, que fine as funções do Ministério Público? Leiam:
"Compete ao Conselho Superior do Ministério Público designar o Subprocurador-Geral da República para conhecer de inquérito, peças de informação ou representação sobre crime comum atribuível ao Procurador-Geral da República e, sendo o caso, promover a ação penal".

Creio que não resta dúvida nenhuma de que, apresentada a representação, cabe ao Conselho definir quem será o subprocurador que vai relatar o caso.

3 - Mas aí algo inusitado se deu. O vice-presidente do Conselho, José Bonifácio Andrada, recebeu a petição e fez a coisa certa: encaminhou-a para a Secretaria do órgão para que se procedesse à designação de um subprocurador-relator, conforme define a lei.

4 - Ocorre que isso não aconteceu. A petição foi despachada, vejam que coisa!, para o gabinete do próprio Aras e, de lá, migrou para o Senado, num encaminhamento absolutamente exótico.

Dispõe o Parágrafo 1º do Artigo 4º do Regimento Interno do Conselho:
"§ 1º O Procurador-Geral da República e qualquer membro do Conselho Superior estão impedidos de participar das decisões nos casos previstos nas leis processuais para o impedimento e a suspeição de membros do Ministério Público".

5 - E, então, cinco subprocuradores-gerais entraram com um Mandado de Segurança no Supremo para que Aras e assessores sejam impedidos de interferir no andamento normal da petição. Um dos signatários é justamente José Bonifácio Andrada. Na ação, argumentam:
"A ilegalidade começa com a surpreendente 'interceptação' do despacho do Vice-Presidente do CSMPF. Com efeito, nem o Procurador-Geral da República, o representado, nem o Vice-Procurador-Geral da República, ocupante de cargo de confiança, longa manus [executor de ordens] do representado, e, o mais grave, expressamente citado na petição de representação como autoridade, poderiam despachar e, menos ainda, interceptar o despacho proferido pelo Vice-Presidente do Conselho Superior do MPF".

Aras afirmou que só vai se manifestar nos autos. Certamente o caso será levado à sabatina de logo mais.

OMISSÃO, SIM!
Reitero o que já disse aqui e em outros meios. Aras exerceu papel importante ao desmontar os arreganhos autoritários da Lava Jato, a mãe de todos os desatinos, que nos conduziu a esta terra devastada. Mas o bem que fez vai sendo, a cada dia, diminuído por aquilo que considero escancarada omissão no enfrentamento dos ímpetos ditatoriais do presidente da República, que se manifestam também na forma de crimes comuns.

E, no caso, o papel da PGR é pedir a abertura de investigação e, diante de um inquérito robusto nas evidências, de ação penal. E, no entanto, tem-se a impressão de que a PGR não existe.

Tanto as coisas se dão deste modo que recaem sobre as costas do ministro Alexandre de Moraes o peso de ter autorizado a ação da PF contra promotores de atos criminosos e antidemocráticos — e quem pediu autorização para que a operação fosse desfechada foi a Procuradoria da República no Distrito Federal.

De tal sorte recai sobre o Supremo a inteira responsabilidade de coibir o arbítrio e o crime que não se reconhece a atuação do Ministério Público nem quando o órgão atua.

CONCLUO, POIS
Sei que dificilmente acontecerá, mas a melhor coisa que faria o Senado-- diante dos descalabros a que Bolsonaro conduziu o país, com uma PGR silente -- seria recusar o nome de Aras.

Pensem na enormidade que está em curso. O país está debatendo risco de conflagração armada, sob o patrocínio do senhor presidente da República. E onde tem andado o procurador-geral?

O órgão emitiu, como esquecer?, uma nota em defesa da liberdade de expressão para, na prática, contestar a prisão de Roberto Jefferson, que, em um dos vídeos, chegou a dar uma aula sobre um modo de matar policiais.

Não. Pelo meu crivo, Aras não passa. Mas vai passar pelo do Senado.

Por Reinaldo Azevedo

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