segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Instinto de sobrevivência anima Câmara a desarmar arapuca do voto impresso



Em votação eletrônica, a Câmara se equipa para sepultar o voto impresso, uma desnecessidade que Bolsonaro converteu em prioridade pessoal. Deve-se a tendência ao instinto de sobrevivência da maioria dos 513 deputados. Disseminou-se entre os congressistas a sensação de que a campanha de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas é parte de um plano do presidente para repetir no Brasil a estratégia de Donald Trump, que culminou com a invasão do Capitólio, o prédio onde funciona o Poder Legislativo dos Estados Unidos.

Em decisão inédita, Arthur Lira, o réu que preside a Câmara, decidiu levar a polêmica do voto impresso ao plenário mesmo depois de a proposta ter sido rejeitada pela comissão especial que cuidou do tema. Agora, a maioria dos líderes partidários cobra pressa na votação. Deseja-se desligar a polêmica da tomada rapidamente, se possível ainda nesta terça-feira. Vice-presidente da Câmara, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) disse ter certeza de que o voto impresso será rejeitado "por ampla maioria."

Nos Estados Unidos, a psicopatia eleitoral de Trump foi detida pela reação vigorosa das instituições americanas. A exemplo de Bolsonaro, Trump questionou previamente as eleições. Seu alvo foi uma peculiaridade admitida pela legislação americana: o voto enviado pelos Correios. Derrotado pelo rival Joe Biden, Trump entulhou o Judiciário de recursos contra a apuração, todos rejeitados. Em seguida, insuflados pelo líder, devotos de Trump invadiram o prédio do Congresso, numa ação que produziu mortes e constrangimento.

O receio de que Bolsonaro repita Trump transformou a aversão ao voto impresso num fenômeno suprapartidário. Até parlamentares de partidos governistas votarão contra a obsessão do presidente. Um detalhe reforça os temores: diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, onde os militares se posicionaram frontalmente contra ou arroubos de Trump, as Forças Armadas brasileiras oscilam entre a omissão e a adesão à insensatez de Bolsonaro. O general Braga Netto, ministro da Defesa, já revelou em discurso seu apreço pelo voto impresso.

A escalada de Bolsonaro leva o parlamentar de bom senso a parodiar uma célebre definição sobre o tempo. Santo Agostinho dizia: "Se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei. Se quero explicá-lo a quem pede, não sei." Ao questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas, Bolsonaro inspira uma reflexão análoga: se ninguém pergunta, todo mundo sabe o que é democracia no Brasil. Se alguém questiona o que seria uma democracia em que um político chama de fraudada até a eleição em que se tornou presidente da República, ninguém sabe.

Generaliza-se a convicção de que Bolsonaro está decidido a transformar a democracia brasileira num regime com a cabeça a prêmio. Daí a tendência de rejeição da proposta sobre voto impresso na Câmara, composta por 513 deputados eleitos em urnas eletrônicas, confiáveis e auditáveis. Vivo, Santo Agostinho daria um conselho aos brasileiros que ainda têm apreço pela democracia: Prestem atenção ao tempo. Cuida dos minutos, porque as horas passam. A situação provocada por Bolsonaro é de tamanha indignidade que até congressistas indignos já estão indignados com o projeto autoritário do presidente.

Por Josias de Souza

Nenhum comentário: