Raramente li uma decisão tão absurda, equivocada e tecnicamente teratológica como a tomada pela juíza Pollyanna Kelly Martins Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília, que rejeitou denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra o agitador bolsonarista Allan dos Santos por incitação ao crime e ameaça contra o ministro Roberto Barroso, do Supremo.
Não estou ainda com os olhos cansados, mas já vi muita coisa. É a primeira vez que me deparo com um magistrado que considera que a vítima é que define a existência ou não de um crime. Se um determinado ato se dá contra o indivíduo A, talvez se tenha incorrido em delito; se for contra o B, não. De resto, mais uma vez, entendo, o crime está sendo chamado de liberdade de expressão. Já chego lá.
Durante muito tempo vigorou entre nós um brocardo autoritário, a saber: "Decisão da Justiça não se discute". Errado! Na democracia não é assim. Discute-se tudo! Inclusive decisão da Justiça. O lema há de ser outro: "Decisão da justiça se discute, mas se cumpre". E, cabendo recurso, os descontentes recorrerão. Inaceitável, por óbvio, é fazer o que faz Bolsonaro: "Ou o Judiciário decide como quero, ou eu viro a mesa e boto tanques na rua". Perceberam a diferença?
MAS O QUE FEZ A JUÍZA?
Vamos ver. Numa das transmissões no Terça Livre, canal que mantém na Internet, Santos afirmou o seguinte, aos berros, referindo-se a Roberto Barroso:
"Tira o digital, se você tem culhão! Tira a porra do digital e cresce! Dá nome aos bois! De uma vez por todas, Barroso, vira homem! Tira a porra do digital! E bota só terrorista! Pra você ver o que a gente faz com você. Tá na hora de falar grosso nessa porra".
Depois que esse troço foi ao ar, o ministro entrou com uma representação no Ministério Público Federal, que entendeu que a fala de Santos transborda os limites da liberdade de expressão, denunciando-o por ameaça e incitação ao crime, Artigos 147 e 286 do Código Penal.
Pollyanna Kelly, no entanto, não viu nas palavras transcritas acima nada além de grosseria.
SEM CRIME???
Entrando na psicologia de Santos -- e não sei com quais instrumentos o fez --, a juíza infere (segue como o original):
"No presente caso, depreende-se das falas do denunciado que consistiram tão somente em impropérios e bravatas que não denotam a seriedade e consistência da promessa, inapta, portanto, para incutir temor objetivo no destinatário".
Noto que, para a juíza, as palavras a que apelou o tal Santos não têm a menor relevância. O "pra ver o que a gente faz com você", segundo a doutora, não deve ser levado a sério e nem pode "incutir temor objetivo no destinatário".
Isso significa que ela escarafunchou as respectivas almas do agressor e do agredido. Em uma, encontrou apenas "impropérios e bravatas". Na outra, não constatou "temor objetivo". Cumpre perguntar: de que elementos ela dispõe para afirmar que Santos não representa risco nenhum? Mais: é ela quem decide as razões do temor alheio?
DEPENDE DO ALVO?
No trecho mais espetacular da decisão, escreve a juíza, negando ainda o "temor objetivo ao destinatário":
"Ao contrário, infere-se das falas que se tratam de arroubo claramente impulsionado pelo momento político vivenciado, insuscetível de concretização tendo-se em conta, inclusive, o fato de o destinatário das falas tratar-se de alto dignitário da República, consistindo em autoridade fora do alcance real do denunciado, visto que além de possuir equipe de seguranças qualificados conta com setor de inteligência igualmente preparado, o que impossibilita aproximação por parte do ora denunciado, o qual nem ao menos reside no país".
Mais uma vez, como se vê, a doutora dá mostras de conhecer o íntimo do militante bolsonarista — que estaria falando "impulsionado pelo momento político". Como ela sabe? Não estão, em certa medida, todos os criminosos submetidos a um "momento"? Ah, pobrezinho! Será ele a verdadeira vítima?
E aí vem o inusitado: como o ministro dispõe de "seguranças qualificados" e como estaria "fora do alcance real do denunciado", então inexistem tanto a ameaça como a incitação. Ora, o perigo desta segunda, por óbvio, não está na pessoa do incitador, mas na ação de um terceiro que se sinta estimulado pela incitação.
Por essas razões, a juíza entendeu que "a denúncia ressente-se de amparo legal em face da ausência de justa causa dada a atipicidade das condutas denunciadas".
Ela aproveitou ainda para tratar as palavras de Santos como manifestação da liberdade de expressão. E considerou:
"Tenho ressaltado que o direito de liberdade de expressão dos pensamentos e ideias consiste em amparo àquele que emite críticas, ainda que inconvenientes e injustas. Em uma democracia, todo indivíduo deve ter assegurado o direito de emitir suas opiniões sem receios ou medos, sobretudo aquelas causadoras de desconforto ao criticado."
AFINIDADES?
Note-se que, no ataque dirigido ao ministro, Santos diz, por exemplo: "De uma vez por todas, vira homem". Considera, então, a magistrada: "Na representação da suposta vítima não há sequer menção de existência de temor, mas possível tentativa de intimidação de Ministro do STF. Um magistrado não pode nem deve ser facilmente intimidado, especialmente se o for da mais alta Corte de Justiça deste País".
Entendo errado, ou a juíza sugere que, quanto mais alto o posto ocupado pela autoridade, maior pode ser o agravo sem punição porque, afinal, o alvo "não pode nem deve se sentir intimidado". Na linguagem do agressor, isso se traduz por "ser homem"...
Fiquei um tanto curioso: o que, segundo a juíza, afinal de contas, poderia ser crime? No universo das palavras, então, tudo é permitido?
E ESTA FRASE?
Um dos desastres culturais e civilizacionais em curso no país -- e o próprio presidente da República é o exemplo maior -- está em tomar o crime como liberdade de expressão e a liberdade de expressão como crime.
E que tal esta fala, doutora?
"Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece".
Eis o então deputado Jair Bolsonaro numa entrevista ao jornal Zero Hora, depois de ter dito duas vezes que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela "não merecia".
Liberdade de expressão, certo, Pollyanna Kelly?
NÃO É AQUELA JUÍZA?
Sim, Pollyana Kelly é a juíza que rejeitou o pedido do procurador Frederico de Carvalho Paiva para que se abrisse nova ação penal contra o ex-presidente Lula no caso do tal sítio de Atibaia. O que uma coisa tem a ver com outra? Nada. Estar errada numa decisão não implica estar também na outra.
Até porque se deu pouco destaque a um dado que chega a ser estupefaciente: na nova denúncia apresentada, o procurador se confundiu — leia mais aqui — e, acreditem, listou no processo do sítio os acusados na investigação da suposta doação do terreno da Odebrecht para o Instituto Lula. O espírito caça-Lula é tal que não leem direito nem o que mandam para a Justiça. A ideia era ser o mais célere possível... Quem sabe uma inelegibilidade até 2022, não é mesmo?
Esse caso de Atibaia já está entrando para o anedotário das farsas judiciais. Gabriela Hardt, a juíza que condenou o ex-presidente em primeira instância, copiou trechos da sentença que Sergio Moro emitiu sobre o apartamento de Guarujá. A vergonha foi tal que esqueceu até de trocar a palavra "apartamento" por sítio. Também citou contra Lula os testemunhos de "dois" indivíduos: "Léo Pinheiro e José Adelmário". Ocorre que são a mesma pessoa. Léo Pinheiro é o apelido de José Adelmário.
E, na tentativa de o MPF reavivar o caso, o procurador confundiu os envolvidos num processo com os envolvidos no outro... E esse é apenas um dos problemas.
Pollyana Kelly não fez favor nenhum a Lula. Cumpriu a lei. No caso de Barroso, entendo, confundiu crime com liberdade de expressão. É o tipo de decisão que incentiva o vale-tudo nas redes.
Se aquilo pode ser dito sobre Barroso, o que se pode dizer sobre Bolsonaro, que tem ainda mais seguranças, doutora? Isso é critério de justiça?
Por Reinaldo Azevedo
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