A pandemia não é uma "gripezinha" nem está no "finzinho". Mas já é possível enxergar pus no fim do túnel. O Ministério da Saúde apodrece tão rapidamente que já roubaram até o benefício da dúvida. O governo ainda rala para explicar o enrosco da Covaxin. E já surgiu um escândalo novo em meio a velhos conhecidos: o capitão que manda, o general que obedece, o padrinho do centrão.
O representante de uma empresa que vende remédios acusou o diretor de Logística da pasta da Saúde, Roberto Ferreira Dias, de cobrar propina em troca da compra de vacinas da AstraZeneca. Dessa vez, o governo reagiu rápido. Bolsonaro não esperou nem a notícia escorregar do cristal líquido para o papel.
Apadrinhado do deputado Ricardo Barros, líder de Bolsonaro na Câmara, Roberto Dias foi exonerado no final da noite, quando o nome dele migrava da internet para as páginas impressas da Folha. Bolsonaro já aprendeu que, descoberta a suspeita de mutreta, a inação do administrador rende pedido de inquérito no Supremo por prevaricação.
Antes de enfiar-se sob as cobertas, o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz, correu às redes sociais para avisar que a comissão tentará ouvir já na sexta-feira (2) o denunciante: Luiz Paulo Dominguetti. Ele se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply no Brasil. Foi a uma mesa de restaurante para negociar a venda de 400 milhões de doses de AstraZeneca. Saiu mordido em US$ 1 por dose.
"No meu governo não tem corrupção", gosta de dizer Bolsonaro. "Não é por virtude, mas por obrigação", costuma emendar o capitão. Ao deixar o comando do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello soou como se quisesse demonstrar que não convém discutir com especialistas. "A operação de grana com fins políticos acontece aqui", discursou o general na despedida, com o sucessor Marcelo Queiroga do lado.
O governo Bolsonaro mudou de patamar. Já não é investigado na CPI apenas por negacionismo. É perscrutado por seu negocismo. Para compreender a situação é necessário um certo distanciamento. A coisa pode começar num contrato para compra de vacina chinesa e terminar numa conta numerada no paraíso fiscal de Singapura.
Bolsonaro ajustou o discurso. Migrou do incorruptível para o "não tenho como saber tudo o que acontece" nos ministérios. A má notícia é que o presidente não consegue comprovar que seu governo é limpinho. A boa notícia é que Bolsonaro já demonstrou que a honestidade é uma virtude facilmente contornável.
O capitão diz que não tem nada com os malfeitos que vêm à tona. Na pasta da Saúde, nada é uma palavra que ultrapassa tudo. Ali, Bolsonaro manda. Pazuello obedeceu. O doutor Queiroga, indicado por Flávio Bolsonaro, o príncipe que abriu as portas do BNDES para um sapo do mercado das vacinas, vai no mesmo caminho.
Bolsonaro está tão ocupado em livrar o país da corrupção que ainda não teve tempo de afastar Ricardo Barros do posto de líder do governo na Câmara. Nesta quarta-feira, a CPI da Covid aprovará um lote de convocações. Um dos convocados será Luis Ricardo Miranda, o servidor concursado da Saúde que começou a levantar o tapete.
Do jeito que a coisa vai, quem conseguir agachar para desviar das balas perdidas será considerado personagem de grande altivez no que resta do Ministério da Saúde depois da ocupação em que Bolsonaro juntou numa mesma trincheira os militares do pelotão alternativo de Pazuello e os civis da milícia do centrão. Não há benefício da dúvida que sobreviva a tanta culpa.
Por Josias de Souza
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