quarta-feira, 9 de junho de 2021

Exército e Pazuello. Nome do livro: "Cem Anos de Aberração". Freixo neles!


General Pazuello durante depoimento na CPI da Covid, evidenciando que faz da máscara um uso
tão criativo como faz do Estatuto dos Militares e do código do Exército Imagem: Sergio Lima/AFP

A literatura de inclinação surrealista não fincou raízes no Brasil, ao contrário do que se deu em outros países latino-americanos. Caberia especular por quê. Uma hipótese é que o catolicismo português, muito mais manso do que o espanhol, deixou-nos como herança um pendor menor para enveredar pelo caminho do absurdo. José J. Veiga foi dos poucos que caminhou nessa trilha. A onda em curso de obscurantismo e insensatez está a pedir um mergulho nas nossas insanidades.

A decisão do Exército de manter sigilo por 100 anos sobre as razões que levaram a Força a não punir o general Eduardo Pazuello é um emblema dessa estupidez. Nem é preciso que alguém escreva o roteiro do fantástico e do ilogismo. Ele já está dado.

De fato, o Artigo 31 da Lei 12.527, conhecida como "Lei da Transparência", prevê no Inciso I do Parágrafo 1º:
Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.
§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:
I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem;

Bem, note-se, de saída que se fala em "prazo máximo" de 100 anos, não mínimo.

Mas, por óbvio, não é disso que se cuida quando uma força armada analisa as razões que levaram um general da ativa a subir no palanque em que o presidente da República está a fazer um discurso de claro teor político — e da pior política: a fala de Bolsonaro no evento havido no Rio no dia 23 foi claramente golpista.

Vamos ver. O Exército tem um código disciplinar. As Forças estão submetidas ao Estatuto dos Militares. Um general afronta os dois documentos e manda a hierarquia às favas e, na hora da prestação de contas, alega-se tratar-se de "informações pessoais", que só podem ser compartilhadas com "agentes públicos legalmente autorizados"?

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) protocolou um requerimento na Câmara, informa a Folha, em que solicita informações ao ministro Braga Netto, da Defesa, sobre o processo administrativo instaurado pelo Exército para apurar a ida de Pazuello à patuscada bolsonariana.

Acontece que o Inciso II do mesmo Artigo 31 dispõe:
"II - [as informações pessoais] poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem."

Como a alegação do Exército para o sigilo são as tais "informações pessoais" que diriam respeito a Pazuello, entende-se que ele próprio poderia autorizar a divulgação, certo?

Ah, mas ele não autorizaria. Então será preciso apelar ao Item V do Parágrafo 3º, a saber:
"§ 3º O consentimento referido no inciso II do § 1º não será exigido quando as informações forem necessárias:
V - à proteção do interesse público e geral preponderante."

Saber por que o Exército tomou a decisão que tomou diz ou não respeito "à proteção do interesse público e geral preponderante"?

Serão as Forças Armadas, tidas no Artigo 142 da Constituição como "instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina" mera questão subjetiva, que remete à intimidade de Pazuello e dos generais que tomaram a decisão de não puni-lo?

Esse tempo de sigilo — aliás, qualquer fosse o prazo — é um absurdo. Cadê o nosso Gabriel García Márquez para escrever "Cem Anos de Aberração"?

É preciso estudar o melhor caminho legal para ter acesso àquelas informações. Estamos diante da aplicação porca de uma lei federal. Numa primeira mirada, a Justiça Federal pode ser o caminho. Mas também temos uma disciplina constitucional para as Forças Armadas, e a Constituição tem como pilares a transparência, a moralidade e a impessoalidade. Transcrevo o Artigo 37:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência."

Assim, se preciso, que se chegue ao Supremo para tornar públicos os documentos que embasaram o procedimento de investigação interna e a decisão. O Exército não é um assunto privado, que diga respeito aos membros da corporação, que não teriam, então, contas a prestar à sociedade. Estamos falando de agentes públicos.

Já basta que um general da ativa tenha permanecido por 10 meses à frente do Ministério da Saúde, enquanto o país ia empilhando e enterrando seus mortos — muitas vezes, em covas coletivas. Um ato claro de indisciplina, que resulta em impunidade, merecerá o tratamento de "questão pessoal"?

PAZUELLO CANDIDATO?
Bem, tanto pessoal não era que o Patriotas, o partido a que se filiou o presidente, pensa em lançar Pazuello, vejam vocês, candidato ao governo do Rio... Lembro à margem que, se a literatura surrealista não se desenvolveu no Brasil, o surrealismo, por seu turno, fez fortuna. Por que digo isso?

O Artigo 14 da Constituição estabelece que a filiação a um partido é obrigatória a qualquer candidato. Como o Artigo 142 proíbe que militares se filiem a partidos, mas o 14 permite que militares se candidatem, temos, então, a notável exceção para os fardados: podem concorrer a eleições mesmo sem pertencer a legenda nenhuma. E como se as Forças Armadas ou as PMs fossem o seu partido. Outra aberração.

Com menos de 10 anos de serviço, têm de passar para a reserva; com mais de 10, só deixarão a corporação a que pertencerem se eleitos; caso contrário, podem ser reintegrados. E só precisam se afastar da função a partir do deferimento do registro da candidatura. Isso explica a farra de militares na política, especialmente oriundos das Polícias Militares — e, como consequência, tem-se a óbvia politização dos quarteis. Lembram-se do motim da PM do Ceará?

Já imaginaram Pazuello se afastando temporariamente do Exército para ser candidato, ainda que a deputado, e, caso fosse malsucedido, voltando para a carreira? Não creio que a tanto vá se aventurar. Mas haver essa possibilidade é a evidência de quanta coisa errada remanesce por aí. A propósito: nem a passagem para a reserva o Exército teve o bom senso de impor ao ex-ministro.

ENCERRO
Volto ao ponto para encerrar. Os 100 anos de sigilo são uma sandice que tem de ser revertida na Justiça.

Além de ter exercido o triste papel no Ministério da Saúde, com as consequências conhecidas, ainda há do que Pazuello se envergonhar pessoalmente?

Que mais ele fez, gente? Não importa! Como a decisão foi tomada pelo Exército, isso nos diz respeito. A Força pertence ao país, não aos generais.

Por Reinaldo Azevedo

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