quarta-feira, 23 de junho de 2021

Editorial Estadão - O presidente nervoso



O presidente Jair Bolsonaro mais uma vez agrediu um jornalista que estava no exercício de sua profissão. Bolsonaro estava em um evento militar em Guaratinguetá (SP) quando foi questionado por uma repórter de uma afiliada da TV Globo sobre o fato de ter sido multado em São Paulo por não ter usado máscara numa manifestação.

Era uma pergunta pertinente, considerando-se o fato de que o presidente é o chefe de Estado e, como tal, deveria ser o primeiro a dar o exemplo, adotando a proteção facial, comprovadamente eficiente para reduzir o risco de contaminação, num país que poucos dias antes atingira a terrível marca de 500 mil mortos pela pandemia de covid-19. A pergunta enfureceu Bolsonaro.

“Olha, eu chego como eu quiser, onde eu quiser, está certo? Eu cuido da minha vida. Se você não quiser usar a máscara, você não usa”, disse Bolsonaro, descontrolado. O presidente, aos gritos, mandou a jornalista calar a boca, chamou-a de “canalha” e disse que ela estava fazendo um “serviço porco”.

Bolsonaro já demonstrou em diversas ocasiões seu profundo desapreço pela imprensa em geral, com exceção dos veículos bolsonaristas que o adulam. A um jornalista que o questionou, em agosto de 2020, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, o presidente disse que sua “vontade” era “encher tua boca de porrada”.

A nova demonstração de irascibilidade de Bolsonaro talvez se explique pelo contexto: além da terrível marca de meio milhão de mortos, há o crescente cerco da CPI da Pandemia, há a novidade das manifestações de rua contra o governo, cuja afluência tem sido cada vez maior, e há uma queda significativa de sua popularidade – que deriva não somente da administração irresponsável da crise, mas da alta da inflação e do desemprego. A pergunta sobre a máscara, que o lembra de suas responsabilidades como governante, teria sido a gota d’água que fez transbordar o nervosismo de Bolsonaro com um cenário muito adverso.

Mas é bom que o presidente vá tomando chá de camomila, porque as perguntas incômodas apenas começaram. Bolsonaro terá que explicar, por exemplo, por que seu governo comprou a vacina indiana Covaxin por um preço 1.000% superior ao que o fabricante anunciava seis meses antes, conforme revelou o Estado.

Segundo a reportagem, o laboratório indiano Bharat Biotech ofereceu seu imunizante por US$ 1,34 a dose, conforme telegrama secreto da Embaixada do Brasil em Nova Délhi. Em dezembro, outro telegrama dizia que a vacina custaria “menos do que uma garrafa de água”. Ao fazer a aquisição do imunizante, por ordem de Bolsonaro, o Ministério da Saúde aceitou pagar US$ 15 por unidade.

Ao contrário do que foi feito na negociação de outros imunizantes, a importação da Covaxin teve uma empresa intermediária, a Precisa Medicamentos, acusada de fraude com testes de covid e que tem como sócia uma empresa que é alvo de processo por não entregar remédios comprados pelo Ministério da Saúde. Por óbvio, a CPI da Pandemia quer saber por que, no caso da Covaxin, o governo recorreu a um intermediário – e um tão cheio de pendências judiciais.

Ademais, chamam a atenção a celeridade do governo para fechar negócio (foram 3 meses de negociação, contra 11 no caso da Pfizer), o alto preço pago (muito acima do inicialmente anunciado e bem superior ao da Pfizer, que vendeu por US$ 10 a dose) e o fato de que a Covaxin foi adquirida sem ter passado por todas as fases de testes e sem ter aval da Anvisa – condições que Bolsonaro havia imposto para comprar “qualquer vacina”. Em depoimento em poder da CPI, um servidor do Ministério da Saúde revelou ter havido “pressões anormais” para a compra da Covaxin.

É um escândalo, que se junta com destaque à extensa lista de delinquências do governo na gestão da pandemia e em outras searas. Bolsonaro pode continuar tentando intimidar jornalistas que se atrevem a lhe fazer perguntas, mas em algum momento, de um jeito ou de outro, terá que responder, mais do que às questões que lhe fazem, por seus atos.

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