quarta-feira, 2 de junho de 2021

Não houve preconceito contra Nise. Ela, sim, é preconceituosa com a ciência



O depoimento de Nise Yamaguchi foi tão absurdo, e ela disse tantas mentiras, além de ignorância específica sobre infectologia, que alguns bolsonaristas resolveram, quem diria?, apertar as teclas da misoginia e do racismo para tentar transformar a algoz da verdade — foi o depoimento mais assombroso de todos — em vítima. Vejam que coisa: de súbito, o bolsonarismo resolveu flertar com o feminismo e com a denúncia ao racismo. É mesmo? Racismo contra japoneses e descendentes no Brasil? A menos que tenhamos voltado ao getulismo da guerra, acho que não. Se há discriminação, é a positiva: no geral, são tidos por mais inteligentes, mais aplicados, mais disciplinados...

Mas isso tudo é conversa para o gado mugir — com o auxílio de alguns miolos-moles por aí. Nise não foi confrontada nem com mais nem com menos dureza do que qualquer outro que tenha sentado naquela cadeira. Tampouco se apelou à sua origem. Se as redes sociais barbarizaram, não sei. A CPI não pode responder por elas. Ou os senadores independentes e de oposição não seriam alvos do ataque organizado de milícias digitais especializadas em mentir.

Ocorre que não estava sentada naquela cadeira uma pessoa qualquer. Nise havia construído uma reputação respeitável — justa ou injusta — antes de cair no pote de cloroquina. Emprestou o seu nome a um tratamento desmoralizado no mundo inteiro. O pai da tese de que a cloroquina poderia ser útil no tratamento da Covid-19, o malucão francês Didier Raoult, já abjurou. Seu "estudo" é uma fraude técnica e científica. Donald Trump comprou o "milagre". Bolsonaro foi atrás. O então presidente dos EUA caiu fora a tempo. O brasileiro ficou. Afinal, o remédio era o que ele oferecia como alternativa ao distanciamento social. A síntese: "Tomem cloroquina e levem vida normal porque a economia não pode parar, e todo mundo morre um dia". Segundo ele, "sem sentir",

A BARBARIDADE SOBRE A VACINA
Poucos se deram conta de que Nise Yamaguchi negou -- SIM, ELA NEGOU -- que a vacina seja "a única saída", no que respeita à administração de uma droga, contra a Covid. Não! Para ela, existe o tratamento preventivo. Nas suas palavras:
"Eu considero que a vacina é prevenção, e o tratamento é tratamento. E que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. (...) Então são coisas diferentes. Só não se deve dizer que [a vacina] é a única saída".

É a voz da estupidez e do obscurantismo. É a tese que está na base das ações e omissões do governo. Especialmente quando se sabe que esta senhora já havia criticado a vacinação universal e se colocado contra a imunização obrigatória.

A fala acima levou o presidente da CPI a interrompê-la para fazer uma declaração. Não porque ela é mulher. Não porque, nascida em Maringá, vem de uma família de japoneses. Mas porque ela estava falando uma aberração perigosa, que leva pessoas à morte caso decidam não tomar vacina. O que disse Aziz? Isto:
"A doutora Nise, com essa voz calma, tranquila, ela é convincente. Porque quem grita não consegue convencer ninguém. Mas quem fala baixo, de uma forma bastante calma, parece que passa mais credibilidade. Na realidade, a quem está nos vendo neste momento, eu peço que desconsidere essas questões que ela diz aqui em relação à vacina. (...) A sua voz calma, a sua forma de falar, convence as pessoas como se a senhora estivesse falando a verdade. Infelizmente, doutora Nise, o que os seus colegas me falaram, eu retiro completamente. Eles estão totalmente equivocados em relação à senhora. A senhora está omitindo aqui muita coisa. E eu sou presidente da Comissão, e estou alertando que a senhora será convocada novamente".

Agressividade? Valentia contra mulher? Ah, não! Diria até que pode ter havido aí uma discriminação às avessas. Já vi Aziz ser muito mais duro com depoentes homens e com seus próprios colegas. Se uma "especialista" abusa de sua voz mansa para produzir mentiras e obscurantismos, o presidente da CPI pode e deve fazer essa intervenção. Tem, a rigor, poder para mais do que isso.

BOBAGEM SOBRE DOENÇA AUTOIMUNE
Doutora Nise fez residência médica em imunologia. Até fico tentado a fazer digressões sobre suas múltiplas especializações, mas vou me conter. Fez campanha contra a vacina até quando usou a si mesma como exemplo. Afirmou:
"Eu não posso me vacinar, porque eu tenho uma doença autoimune".

A doença a que ela se refere é vasculite. A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) recomenda precisamente o contrário. A situação é de tal sorte absurda que a SBR sentiu-se na obrigação de emitir uma nota logo depois da declaração de Nise. Diz o texto:
"A Comissão de Doenças Endêmicas e Infecciosas da Sociedade Brasileira de Reumatologia esclarece a população que doenças reumáticas (DR), incluindo artrite reumatoide, espondiloartrites, artrite psoriásica, lúpus eritematoso sistêmico, esclerose sistêmica (esclerodermia), Síndrome de Sjögren primária, miopatias inflamatórias e vasculites não representam, por si só, contraindicação específica para receber qualquer vacina contra a COVID-19.
Vale ressaltar que todas as vacinas para COVD-19 disponíveis e aprovadas atualmente no Brasil são vacinas que não contêm componentes vivos e que não transmitem a doença viral, nem alteram o material genético. Essas vacinas podem ser usadas em pacientes com doenças reumáticas, bem como em pacientes recebendo medicamentos que influenciam o sistema imunológico. Além disso, não há razão, à luz das evidências atuais, para contraindicar essas vacinas em pacientes com doenças reumáticas e pacientes em tratamento com medicamentos imunossupressores.
A SBR recomenda que os pacientes de doenças reumáticas procurem o reumatologista para orientação sobre vacinação contra COVID-19.

1º de junho de 2021."

ABERRAÇÃO
Que Nise não queira tomar a vacina, isso é lá com ela, com quem lhe dá emprego e com seus pacientes. Se eu me tratasse com a doutora, fugiria. Ela é oncologista? Atende, sem estar imunizada, a pacientes que podem estar imunodeprimidos em razão da quimioterapia? A declaração é de uma irresponsabilidade espantosa.

E a coisa não parou por aí, é claro. Durante todo o depoimento, a guia de Bolsonaro no enfrentamento a Covid, com mais de 465 mil mortos no dia em que ela falava, citava estudos já desmoralizados mundo afora e reiterava a efetividade da cloroquina e da hidroxicloroquina, contando mentiras em proporções industriais.

Se foi alvo nas redes de misoginia e racismo, reitero, não sei. Se foi, é uma estupidez. Os senadores da comissão a trataram com o devido respeito. Se ela não sabe direito a diferente entre protozoário e vírus e se ignora a linhagem do coronavírus, isso não é culpa de quem pergunta.

Dado que ela é principal inspiração intelectual da desastrosa política de saúde que está em curso, diria que a sua suavidade serviu para mascarar o mais mentiroso de todos os depoimentos prestados à CPI. Mais do que isso: há um crime confesso — de todos os que ajudaram espalhar a cloroquina, de lesa-medicina e de lesa-humanidade.

Por Reinaldo Azevedo

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