Pouca gente se lembra, mas o Brasil começou a monitorar a Amazônia por satélite para poder destruí-la melhor. Eram os anos 1970, e a ditadura militar fazia sua grande intervenção na maior floresta tropical do mundo. O plano dos generais era mandar colonos nordestinos atingidos pela seca, os “homens sem terra”, para a “terra sem homens” amazônica.
Assim se cumpriria um duplo objetivo: aliviar a pressão social do Nordeste e povoar a região Norte, que representa mais de metade do território nacional e cujas riquezas em madeira e minérios supostamente despertavam enorme cobiça internacional. O lema dessa estratégia de ocupação era “integrar para não entregar”. Os colonos ganhariam terras na Amazônia, desde que cumprissem o pré-requisito de botar a floresta abaixo para formar pastagens. Sim. E para garantir que os donatários estivessem mesmo desmatando, os militares encomendaram ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em 1977, o sistema Prodes, que começou a dar taxas anuais de desmatamento em 1988.
Agora a relação entre Inpe, militares e Amazônia voltou a ocupar o noticiário. O governo de um capitão reformado do Exército, Jair Bolsonaro, passou a atacar o instituto porque seus sistemas de monitoramento estão fazendo o que foram feitos para fazer: medindo a destruição da Amazônia. Seu diretor, o físico Ricardo Galvão, foi demitido em agosto por dar a real sobre o aumento na velocidade dessa destruição.
O episódio expôs para o Brasil e o mundo a grande estratégia de Bolsonaro para a Amazônia. Como tudo no bolsonarismo, é uma estratégia trôpega: reafirmar a soberania entregando a floresta às forças responsáveis por sua aniquilação. Numa adaptação do lema da ditadura, o capitão quer “estragar para não entregar”. Jair Bolsonaro, afinal, foi eleito prometendo estimular os agentes do desmatamento e ativamente reduzir ou eliminar os fatores que o controlam: disse que iria “meter a foice no Ibama”, reverter a demarcação de terras indígenas e unidades de conservação e legalizar o garimpo. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções, entregou o Ministério do Meio Ambiente a um condenado por fraude ambiental.
É difícil entender por que um presidente da República defenderia a predação da Amazônia. Muito menos por que faria disso um cavalo de batalha, atraindo para si o desgaste inevitável decorrente dessa posição – a revista britânica The Economist chamou o Jair de “o líder mais perigoso do mundo” para o ambiente. Os generais da ditadura pelo menos podiam dizer honestamente que não sabiam que suas políticas iriam dar ruim para a floresta.
O PIB agropecuário quase dobrou entre 2004 e 2012. E esse foi justamente o período em que o desmatamento caiu 80%
Bolsonaro insiste num discurso segundo o qual o desmatamento é o preço do crescimento econômico. Só que na Amazônia isso não faz nenhum sentido: mais de 90% do desmate ali é ilegal; grande parte dele está ligada ao crime organizado e à grilagem de terras. É destruição que não gera arrecadação nem empregos. Ao contrário, os municípios campeões de desmatamento estão entre os menores IDHs da Amazônia e do Brasil. E o oposto se verifica: o PIB agropecuário da região Norte quase dobrou no período em que o desmatamento caiu 80%, entre 2004 e 2012. O setor da soja convive muito bem, obrigado, com uma moratória à produção em novas áreas desmatadas na Amazônia em vigor desde 2006.
Como explicar a obsessão amazônica do presidente, então?
Talvez ele acredite mesmo que potências estrangeiras estão a fim de tomar a Amazônia do Brasil, como fantasiavam os governos militares. O ambientalismo tornou-se o avatar do inimigo imaginário externo desde o fim dos anos 1980, quando o reconhecimento científico do papel da floresta no equilíbrio do clima global levou a pressões contra o desmatamento. Uma série de declarações desastradas de líderes estrangeiros não ajudou a sossegar os ânimos soberanistas – de François Miterrand defendendo a “soberania relativa” do Brasil sobre ela a Al Gore dizendo que a Amazônia “é de todos nós”.
Paranoia extremista
Desde então, o céu tem sido o limite para as fake news sobre o tema: a história das aldeias indígenas onde só se fala inglês e agentes do Estado brasileiro não entram. A história do mapa-múndi pregado nas escolas dos EUA onde a Amazônia aparece como “território internacional”. A história de ONGs ambientalistas agindo a mando ora do príncipe Charles, ora dos criadores de gado franceses, ora dos sojicultores americanos.
As versões modernas desse delírio vêm de autores de extrema-direita. É o caso do jornalista mexicano Lorenzo Carrasco, coautor de um livro chamado Máfia Verde – o Ambientalismo a Serviço do Governo Global.
Um post de Carrasco quase tirou o Brasil do acordo do clima de Paris, que o mundo levou uma década para negociar. Ele tratava do chamado Corredor Triplo A, uma proposta de criar conectividade entre áreas florestais já protegidas numa faixa que vai do Amapá até a Colômbia (abarcando Andes, Amazonas e Atlântico).
O mexicano inventou que o corredor fazia parte de um plano da Coroa britânica para internacionalizar a Amazônia. Como o presidente colombiano Juan Manuel Santos declarou numa entrevista que aproveitaria a COP21, a conferência do clima de Paris, para discutir o tema com outros presidentes sul-americanos, em 2015, criou-se a lorota de que o Acordo de Paris pressupunha a internacionalização da Amazônia.
Ao beber das teorias conspiratórias, Bolsonaro mergulha toda a discussão sobre Amazônia num caos arranjado para evitar qualquer política pública ou qualquer atuação do terceiro setor – o que é um problema grave, já que, frequentemente as ONGs são o único meio de interlocução das populações amazônicas com as políticas do Estado.
Enquanto isso, liberam-se as forças predatórias e o crime organizado, associado aos poderes locais, para empreender a rapinagem na floresta. E o resultado é essa escalada nas taxas de desmatamento. O irônico é que, ao queimar as árvores, o Brasil está, sim, internacionalizando a Amazônia. Do pior jeito: transformando-a em gás carbônico, que aumenta as temperaturas no mundo inteiro.
Por Super Interessante
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