Vários grupos do Telegram, nos quais procuradores da República comemoravam o funeral do Estado de Direito e debochavam dos funerais de parentes de Lula, chamavam-se “Filhos de Januário”.
Filhos de Januário, sim, mas pais de Jair Bolsonaro. No momento, essa família moral está em litígio. Seus integrantes disputam a primazia do Estado policial. Deixo este fio aqui para ser retomado mais tarde. Preciso ir ao Supremo.
O pleno do tribunal acabará decidindo que destino terá um fundamento da Constituição que é pilar das democracias na preservação dos direitos individuais em face da pretensão punitiva do Estado.
Refiro-me ao Inciso LV do Artigo 5º da Constituição: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Com base nesse fundamento, a Segunda Turma da Corte, por 3 votos a 1, anulou a condenação de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras, e devolveu o processo para a primeira instância.
Aproveito para saudar o reencontro com uma Cármen Lúcia comprometida com os direitos fundamentais e com o devido processo legal. Também votaram com a Constituição Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
É incrível! A dita Carta Magna estava sendo violada a céu aberto, e não nos dávamos conta.
Como era possível que um réu delator e um réu delatado entregassem ao mesmo tempo suas alegações finais quando o primeiro está a fornecer elementos contra o segundo, sem que este tenha chance de se defender das acusações?
Vivemos um tempo sob a névoa do que pretendia ser uma nova era, como a definiu Musil em “O Homem Sem Qualidades”: havia “ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados”.
Um réu delator não vira membro do órgão acusador, é verdade, mas passa a trabalhar em favor de sua causa. Não raro, o processo só existe porque existe a figura deste que é chamado também “colaborador”.
De fato, nem o Código de Processo Penal nem a lei 12.850 preveem que o delatado tenha acesso às alegações finais do delator para, então, entregar a sua defesa.
Ao apelar à inexistência de prescrição legal para recusar o habeas corpus, Edson Fachin maximiza o que duas leis menores não dizem para ignorar o que a Lei Maior diz.
Até o voto de Fachin, eu já tinha visto centenas de vezes ministros a declarar inconstitucional uma lei. Mas é a primeira vez que vejo um membro da Suprema Corte a declarar ilegal a Constituição.
A anulação de processos em que houve violação do princípio do contraditório e da ampla defesa já está a ser tratada por aí como uma vitória dos corruptos e da corrupção. É mesmo?
É uma falsa questão. As punições podem e devem se dar dentro dos marcos legais. Temos de decidir se a Lava Jato se subordina à Constituição ou se a Constituição se subordina à Lava Jato.
Num caso, temos futuro; no outro, só o caos está à espreita porque não mais dependeríamos de instituições, mas de voluntariosos que se arvoram em demiurgos do país.
Retomo o fio lá do começo. Para os “Filhos de Januário e Pais de Bolsonaro”, a decisão da Segunda Turma, em tema que será apreciado pelo pleno, é mais um evento de um grande complô contra a Lava Jato.
E, desta feita, vejam que coisa!, o próprio presidente teria se unido aos inimigos da operação para salvar Flávio Bolsonaro. É o que alardeia Carlos Fernando, ex-membro da Lava Jato.
Bolsonaristas e lava-jatistas têm entendimentos distintos sobre a hierarquia do Estado policial. A questão: os órgãos de investigação do Estado se submetem a Bolsonaro, ou ele vira refém daqueles que ajudaram a elegê-lo, o que inclui Sergio Moro, o ministro que quer degluti-lo?
Carlos Fernando agora usa Flávio como isca para tentar atrair o apoio das várias vertentes do antibolsonarismo. É pouco provável que mordam a isca.
A prioridade dos que se alinham com a defesa da ordem democrática é recuperar os fundamentos do Estado de Direito, que os “filhos de Januário e pais de Bolsonaro” mergulharam na lama.
Por Reinaldo Azevedo
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