quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Sabesp: Texto votado é ilegal. Ou: A Polícia aparece mais do que Tarcísio


Polícia e manifestantes entram em choque na Alesp em votação sobre venda do controle da Sabesp; enquanto isso, Tarcísio estava em Brasília, exaltando as glórias de Bolsonaro

O projeto de lei que permite ao governo do Estado de São Paulo vender o controle da Sabesp foi aprovado pela Assembleia Legislativa por 62 votos. Há 94 deputados estaduais. A oposição se ausentou. Houve pancadaria, cassetete e gás de pimenta.

A PM forneceu fotos muitos eloquentes para as campanhas eleitorais à Prefeitura da capital no ano que vem — principalmente à de Guilherme Boulos (PSOL), explicitamente contrário à privatização. Tábata Amaral (PSB) não é simpática e pede mais debate. E o prefeito Ricardo Nunes (MDB)? Bem, ele é favorável se for coisa boa e contrário se ruim... Não me diga.

ILEGAL
Em todo canto se fala de uma vitória do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). É... 62 em 94 é placar bastante convincente. Ocorre que a conclusão do processo está distante ainda. Cumpre, de saída, fazer uma observação, acompanhada de uma curiosidade. O instrumento adotado é escancaradamente ilegal porque fere a Constituição de São Paulo.

O Parágrafo 2º do Artigo 216 é de uma clareza solar e define:
"§ 2º - O Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário".

Mas a Constituição do Estado não pode ser mudada? Pode! A exemplo da Federal, tem de ser por intermédio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC estadual), que também está disciplinada na Carta Paulista, no Artigo 22. Parágrafo 2º:
"A proposta será discutida e votada em dois turnos, considerando-se aprovada quando obtiver, em ambas as votações, o voto favorável de três quintos dos membros da Assembleia Legislativa".

O que a Assembleia aprovou nesta quarta foi um projeto de lei. Fosse uma PEC, teria passado do mesmo jeito, pois seriam necessários 57 adesões — no caso, em duas votações. Ocorre que o governo ficou com medo de escolher a emenda porque julgava ter uns 50 apoios apenas. De toda sorte, independentemente do placar, a ilegalidade do procedimento é inquestionável.

O plano prevê que o Estado mantenha voz ativa na companhia por intermédio da "golden share" — ação preferencial que confere poder de veto em decisões específicas. Não basta. A Constituição Estadual fala em controle acionário.

É PARA JÁ?
Não. Está longe ainda. Se a Justiça não anular o procedimento -- e tem de fazê-lo se cumprir o que está na Constituição Estadual (que se retome, se quiserem, o procedimento por intermédio de PEC), a próxima etapa é o crivo da Câmara dos Vereadores da Capital.

É preciso mudar uma lei, segundo a qual a mudança da composição acionária obriga o município a assumir os serviços prestados pela companhia. Caso isso acontecesse, Tarcísio não conseguiria vender nem o trinco da porta. A cidade responde por 44,5% do faturamento da empresa, que atua em 374 outras cidades. O governador diz que vai conversar com todos os prefeitos. Já não deveria tê-lo feito?

Define a Lei Municipal 14.934, de 18 de junho de 2009:

"Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a celebrar contratos, convênios ou quaisquer outros tipos de ajustes necessários, inclusive convênio de cooperação e contrato de programa, com o Estado de São Paulo (...) com a finalidade de regulamentar o oferecimento compartilhado do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário no âmbito do Município de São Paulo, bem como assegurar a sua prestação pela SABESP, pelo prazo de 30 (trinta) anos, prorrogável por igual período (...)
(...)
Art. 2º. Os ajustes que vierem a ser celebrados pelo Poder Executivo, com base na autorização constante do "caput" do art. 1º, serão automaticamente extintos se o Estado vier a transferir o controle acionário da SABESP à iniciativa privada."

Se os vereadores, pois, não mudarem a Lei 14.934; se a Justiça não tornar sem efeito o texto aprovado nesta quarta e se Tarcísio insistir ainda assim, sabem o que acontecerá? Nada.

PORRADARIA E QUIMERA
Deputados estaduais e governador não estarão submetidos ao escrutínio popular daqui a 10 meses. Prefeitos e vereadores sim. A maioria da população é contrária à privatização, e a cidade vem de uma experiência muito ruim com a Enel, concessionária de energia.

Os que foram à Assembleia protestar nesta quarta certamente passaram dos limites na expressão de uma contrariedade. Tentaram derrubar o vidro que separa o plenário e as galerias. Eu nunca vi, no entanto, cassetete e gás de pimenta contarem a favor do governante de turno, especialmente quando o pau come num espaço fechado, destinado justamente à representação popular.

A coreografia combina com a fama e a fachada de durão que Tarcísio gosta de imprimir à sua performance, ainda que a PM tenha atuado com a autorização do presidente da Assembleia, André do Prado (PL). Ocorre que nem em São Paulo o governador estava. Preferiu participar de uma tal Frente Parlamentar em favor das escolas cívico-militares, em Brasília, em solenidade comandada por Jair Bolsonaro. Discursou:
"A gente olha aqui os alunos das escolas cívico-militares e vê que a gente está diante de um novo Bolsonaro lá na frente. Os alunos têm uma grande oportunidade. Como é bom ter um momento de amor à pátria. Ter disciplina, boa formação que vai fazer a diferença".

Enquanto rolava a porradaria em seu Estado, Tarcísio via fantasmagorias em Brasília. Eram projeções mentais. Os estudantes, obviamente, não tinham nada a ver com o delírio.

A história de que passar as ações nos cobres é parte do programa que ganhou a eleição é conversa mole. De fato, ele chegou a defender a tese quando candidato, mas depois recuou ao perceber resistência do eleitorado. As 43 páginas de seu programa não tocam no assunto. Vitorioso, transformou a coisa em obsessão e vitrine da gestão. A questão é saber: vitrine aos olhos de quem?

Diga-se o que se quiser do projeto, menos que tenha sido exaustivamente debatido em 11 meses. Trata-se de uma empresa de economia mista eficiente, que teve um lucro de 3,121 bilhões no ano passado, o que representou um crescimento de 35,4% na comparação com o ano anterior. O Estado detém 50,3% das ações. Com a venda, pretende conservar entre 15% e 30%, o que, convenham, está mais para uma vaga noção do que para um plano claro. Há outras promessas um tanto mirabolantes para uma suposta e futura redução da tarifa. Ainda voltarei ao assunto.

Estatismo ou privatismo, como "ismos" viciosos, não me interessam. Empresas têm de ser eficientes num caso e noutro. As projeções sobre os ganhos que adviriam com a venda das ações me parecem, até agora, integrar o segundo "ismo". Trata-se de proselitismo vertido em linguagem técnica.

O arranjo prevê até a criação de um fundo, constituído com parte do que for arrecadado com a venda das ações, para garantir, se necessário, preços mais baixos no futuro. Fica com cara de quimera: usar-se-ia, então, na prática, dinheiro público para financiar uma empresa privada?

ENCERRO
É visível que Tarcísio vê a "Operação Sabesp" como uma espécie de passaporte para 2026. Não duvido de que isso o credencie, sim, junto a setores da elite, que teriam, então, nele o seu "privatista" de estimação, coisa que Bolsonaro, efetivamente, nunca foi. É o mesmo governador que está colado ao agro, promovendo uma reforma agrária às avessas, que consiste em distribuir terra a quem já tem terra.

Ainda que a Justiça faça a coisa certa e obrigue o governador a apelar a uma emenda à Constituição do Estado para lograr o seu intento, já se viu que ele dispõe de votos para tanto na Assembleia. O que começa agora é o confronto entre as famosas "narrativas".

Acho sempre ruim quando a polícia aparece mais do que o político. E isso tem sido frequente em São Paulo. No caso da legalidade da operação, a palavra está com a Justiça; no caso do porrete e do gás de pimenta, com o eleitor.



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