sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O copo do governo Lula está meio cheio ou meio vazio? Cheio! De mundo real



Esse negócio de copo meio cheio e meio vazio para avaliar o sucesso ou insucesso de uma empreitada é só uma metáfora do pensamento nem-nem. Se a expectativa dos adversários do dono do copo era a de que estaria vazio no ponto da trajetória em que se faz a análise, então o criticado pode comemorar o feito; se a promessa era a de que estaria pela boca, aí há frustração de expectativas. Lula acumula vitórias inequívocas na conclusão do primeiro ano de mandato. Dado que alguns celerados chegaram a antever a ingovernabilidade e até o impeachment, ele pode se regozijar.

E olhem que escrevo isso no dia em que o Congresso derrubou dois vetos seus:
1: à desoneração da folha de salários, que inclui a redução de recolhimento de INSS para municípios de até 142,6 mil habitantes;
2: ao estabelecimento de um marco (1988, ano da homologação da Constituição) para a demarcação de terras indígenas.

UM POUCO SOBRE OS VETOS

O governo tinha plena consciência das duas derrotas. E, em ambos os casos, haverá judicialização. Só para constar: a desoneração da folha implica uma perda de arrecadação de R$ 9,5 bilhões; o jabuti dos municípios, outra de mais uns R$ 9 bilhões. Placar na Câmara pela derrubada: 378 a 78; no Senado, 60 a 13. Traduzindo: houve progressistas em favor da manutenção da desoneração.

No caso do marco temporal, as favas contra os indígenas também eram contadas. Na Câmara, as esquerdas haviam se unido para manter o veto, mas perderam: 137 a 321. Hoje, no Senado, 53 a 19. O texto mantido pelo Congresso é um descalabro: além de inventar o marco, permite a intromissão em reservas sem a autorização dos indígenas.

Em acordo prévio, só se mantiveram a restrição à expansão de transgênicos nas áreas demarcadas (o agro também não quer saber disso; não sem seu controle); a proibição de a União retomar terra já demarcada e a imposição de limites para o contato com povos isolados. Carlos Fávaro, ministro da Agricultura, que se licenciara para voltar ao Senado e endossar o nome de Flávio Dino, votou contra o governo antes de retornar à pasta.

Entendo que as desonerações, incluindo o jabuti dos municípios, é inconstitucional. Aquilo que quer a maioria do Congresso para as terras indígenas viola igualmente a Carta. Mesmo que se queira votar uma PEC para o liberou-geral, a agressão à Lei Maior permaneceria porque se estaria a cassar direitos fundamentais. Vêm embates por aí. Assim é nas democracias.

MESMO ASSIM?

"E você diz, Reinaldo, que, ainda assim, com a imprensa fazendo escarcéu e anunciando a derrota do Planalto, há razões para comemorar?" A Bolsa bateu seu recorde histórico nesta quinta. Os juros americanos interferiram, claro!, mas a realidade interna não atrapalhou.

A despeito das dificuldades, a economia cresce acima das expectativas; o desemprego mostrou tendência declinante; o país conseguiu aprovar um arcabouço fiscal e caminha para concluir uma reforma tributária. Se não der agora, será no começo do ano que vem. Nunca se esqueçam: os apocalípticos antecipavam o... apocalipse (claro!) desde a PEC da transição, ainda no fim do ano passado. Lula nem havia assumido.

As propostas de Fernando Haddad para a recuperação de receitas — diminuindo o estoque de sem-vergonhices tributárias e mamatas para nababos — avançaram e avançam, ainda que, no percurso, os senhores parlamentares, atendendo a lobbies (como o da desoneração), acabem por reduzir a arrecadação potencial de determinadas medidas.

Eu não odeio a política nem os políticos, vezo que percebo em análises de gente que, então, deveria mudar de profissão. Também não sou o tipo de "idealista" que se descola da realidade e se entrega a digressões sobre o mundo e o país que deveríamos ter. Até posso fazê-lo quando bato papo com meus amigos. A melhor saída, para mim, é sempre aquela que coincide com o sentido da minha vontade, dentro do possível.

MUNDO REAL

Em outubro do ano passado, os brasileiros elegeram o Congresso mais reacionário da história. É um dado do mundo real. E quis o andamento dos últimos 10 anos da vida pública que se conferisse ao Poder Legislativo um poder inédito. Vivemos um semiparlamentarismo informal. O presidente ter recuperado os programas sociais destroçados por Jair Bolsonaro; reordenado as contas públicas num limite que não destrua benefícios -- ainda que persista o déficit -- e adotado medidas que concorram para o crescimento, SEMPRE NEGOCIADO COM O PARLAMENTO QUE HÁ, NÃO COM AQUELE QUE EU GOSTARIA QUE HOUVESSE, bem, eu considero, sim, um feito e tanto.

"Ah, mas veja lá o PT a defender mais déficit para produzir um pouco mais de crescimento..." O partido defenda o que quiser. A escolha, no que lhe cabe escolher no semiparlamentarismo "de facto", é de Lula, que lidera uma frente que vai do PSOL ao PP.

Dados o seu viés e o seu público, um dos papeis do PT é pedir mais inflexão social à gestão. No dia em que Armínio Fraga aplaudir a legenda, um ou outro não estará cumprindo o seu papel. Não se trata aqui de um juízo depreciativo nem sobre um nem sobre outro. Até porque não creio que um e outro sejam dotados da razão universal. Todos têm o caminho da salvação. Receitas infalíveis são sempre tirânicas e não têm de negociar com o Congresso.

Estamos longe do paraíso — e, para ser franco, nem pretendo fazer tal viagem tão cedo. Quando lembro o buraco em que estávamos e vejo, antes que se feche um ano de governo, o ponto da trajetória em que estamos, constato o copo cheio do mundo real e possível. Está, sim, muito longe do meu gosto. Mas eu não preciso negociar com um Congresso que derruba, por ampla maioria, dois vetos civilizatórios. E, no entanto, o país se move.

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