sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Breve ensaio sobre o narcisismo


A forma de expressão é importante, é o que atrai a atenção, mas o maior valor é o conteúdo, o que se aproveita daquilo. O resto é tempo perdido


Caetano Veloso apresenta o show 'Transa' no festival Doce Maravilha — Foto: Divulgação

Quando Caetano cantou em “Sampa” que “Narciso acha feio o que não é espelho”, ele se referia à concretude de São Paulo em relação a Salvador, criando uma rima sonora e expressiva, mas não totalmente verdadeira. Narciso também ama a atração que desperta nos outros, que usa como espelhos. Diz a lenda que o Narciso grego era tão lindo que mulheres e homens se encantavam com ele, que recusava todos, era apaixonado pela própria imagem que via refletida em um lago e, como não podia desejar a si mesmo, acaba se afogando no seu reflexo.

Contardo Calligaris escreveu bastante sobre a “sociedade narcisista” e esclarece que esse transtorno de personalidade, que é visto como símbolo da vaidade extrema, caricaturado por quem fica se enfeitando e se admirando no espelho e não pensa nos outros, na verdade é o contrário: o/a narcisista se acha o máximo, mas precisa da aprovação dos outros para se realizar. O narcisista é dramaticamente atormentado pelo sentimento de que sua imagem depende do olhar dos outros, diz Contardo: “Na conversa leiga, essa constatação soa como uma queixa moral: estaríamos vivendo no mundo do ‘cada um por si’. A clínica sugere o contrário: numa sociedade narcisista, cada um depende excessivamente dos outros.”

O traço dominante da “personalidade narcisista”, para Contardo, é a insegurança. Eles estão sempre se questionando: “O que os outros enxergam em mim? Será que gostam do que veem?”

As redes sociais são a arena onde os narcisistas amadores e profissionais se exibem em disputa da atenção do público, e claro que nunca se sentem satisfeitos ou seguros. A competição é feroz, e envolve tanto o exibicionismo físico como o intelectual, em busca de aprovação e admiração pelos “consumidores de conteúdo”. Claro, nós consumimos o que nos falta, buscamos nos outros o que não temos: ninguém consome o que já tem.

Às vezes, quando escolho uma foto para um post no Insta, fico pensando se eu não seria um narcisista enrustido, inseguro e em busca de aprovação, mas a resposta ao espelho é um “não” sincero. Aprendi que extrapolar a autoestima e o amor próprio não é um bom caminho porque pode levar a um narcisismo estéril e improdutivo, a fracassos e decepções.

Não, nem toda pessoa famosa nas redes sociais é narcisista, mas certamente todo narcisista gostaria de ser uma delas (rsrs) com multidões de seguidores e admiradores, o valor supremo da era da “evasão de privacidade”. Porque antes as pessoas reclamavam de “invasão de privacidade” e agora se expõem em busca de biscoitos físicos ou intelectuais. Não é preciso nenhuma audácia ou coragem para isso, qualquer um pode tentar, o máximo que pode acontecer é pagar alguns micos ou passar batido, aceitar que o que parece fácil é muito difícil de conquistar em todos os níveis, dos mais populares aos mais sofisticados.

A forma, tanto a visual, como a de expressar as ideias, é importante, é o que atrai a atenção, mas o maior valor é o conteúdo, o que se aproveita daquilo. O resto é tempo perdido.

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