quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Quebra coletiva de decoro, injúria, tapão. Congresso é arena de vale-tudo?



Será que eu tenho de falar do tapa que o deputado Washington Quaquá (PT-RJ) desferiu na cara de Messias Donato (Republicanos-ES), um dos bolsonaristas que gritavam ofensas contra o presidente Lula, num episódio lamentável de quebra escancarada de decoro em grupo? E olhem que já critiquei o petista no programa "O É da Coisa" -- vídeo aqui -- quando ele votou, em agosto, para arquivar a representação no Conselho de Ética contra Carla Zambelli (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG), um dos mais assanhados nesta quarta. O parlamentar do Rio disse então:

"Eu acho que nós devemos, nesta tarde, aqui no Conselho de Ética, negar todas as admissibilidades como ato pedagógico, independente do mérito. Não estou falando em nome do PT, estou falando em meu nome próprio".

Explico. Zambelli havia mandado um colega tomar...; o buliçoso deputado mineiro era acusado de transfobia por ter usado uma peruca para tentar ridicularizar as pessoas trans, pedindo que o chamasse de "Nikole". O "ato pedagógico" do também vice-presidente do PT, acho, supunha que os dois "peelistas" pudessem aprender alguma coisa, aposta obviamente fadada ao insucesso.

Na sessão do Congresso de promulgação da reforma tributária — histórica por vários motivos —, os bolsonaristas passaram a atacar Lula em coro. Quaquá se zangou, afrontou os ofensores, disse ter sido constrangido fisicamente por Donato e lhe meteu a mão na fuça. Calma, leitor! Refreie a tentação do prazer vicário. Isso está muito errado! Não só: abandonando de vez sua vocação de pedagogo, chamou Nikole de "viadinho". Ou por outra: numa verdadeira celebração de absurdos, parlamentares cometeram quebra coletiva de decoro e incorreram em crime de injúria contra Lula. O petista permissivo de agosto perdeu a calma, partiu para o tapa e ainda praticou homofobia contra aquele que ele havia protegido da imputação de transfobia. Que tempos, não?

Ah, é claro que os "patriotas" entrarão com uma representação no Conselho de Ética da Câmara contra Quaquá. E, por óbvio, petistas e outros da base têm de fazer o mesmo contra os que participaram do coro infame. Todos — os bolsonaristas e o petista — deveriam ser processados por quebra de decoro, com a cassação dos respectivos mandatos pelo plenário.

"Quem diz isso, Reinaldo? Você?" Não! O Código de Ética da Câmara. Transcrevo:

CAPÍTULO III

DOS ATOS INCOMPATÍVEIS COM O DECORO PARLAMENTAR

Art. 4º Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

I - abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § 1º)

Como se nota, o próprio Código de Ética da Casa reconhece que a imunidade parlamentar, assegurada pelo Artigo 53 da Carta, não abriga o abuso de prerrogativa. Dispõe o Artigo 55, § 1º, citado no Artigo 4º do Código:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

§ 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.

Sigamos com o Código:

CAPÍTULO IV

DOS ATOS ATENTATÓRIOS AO DECORO PARLAMENTAR

Art. 5o Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:

I - perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões de comissão;

II - praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa;

III - praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou comissão, ou os respectivos Presidentes;

OUTRAS PUNIÇÕES

Ainda que o Conselho de Ética abrisse processo contra todos e pedisse a cassação, a decisão seria do plenário, por maioria absoluta, em votação secreta. Não vai acontecer. Se o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não usar a sua influência para articular alguma punição aos descalabros desta quarta, a coisa desanda. De resto, o Artigo 10 do Código prevê penas alternativas à cassação:

DAS PENALIDADES APLICÁVEIS E DO PROCESSO DISCIPLINAR

Art. 10. São as seguintes as penalidades aplicáveis por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar:

I - censura, verbal ou escrita;

II - suspensão de prerrogativas regimentais;

III - suspensão temporária do exercício do mandato;

IV - perda do mandato;

INJÚRIA

Lembro o Artigo 53 da Constituição:

"Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos."

Então o parlamentar pode falar o que lhe der na telha? Vou ao extremo. Ele poderia, na Câmara ou no Senado, defender as milícias, o PCC e o Comando Vermelho? Incitar a luta armada ou golpe de Estado? Incentivar a pedofilia?

Transcrevo trecho de um voto do ex-ministro Celso de Mello:
"O instituto da imunidade parlamentar atua, no contexto normativo delineado por nossa Constituição, como condição e garantia de independência do Poder Legislativo, seu real destinatário, em face dos outros poderes do Estado. Estende-se ao congressista, embora não constitua uma prerrogativa de ordem subjetiva deste. Trata-se de prerrogativa de caráter institucional, inerente ao Poder Legislativo, que só é conferida ao parlamentar ratione muneris, em função do cargo e do mandato que exerce. (...)"

Pareceu um liberou-geral? Mello explica adiante:
"A imunidade parlamentar material só protege o congressista nos atos, palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do ofício congressual. São passíveis dessa tutela jurídico-constitucional apenas os comportamentos parlamentares cuja prática seja imputável ao exercício do mandato legislativo. A garantia da imunidade material estende-se ao desempenho das funções de representante do Poder Legislativo, qualquer que seja o âmbito, parlamentar ou extraparlamentar, dessa atuação, desde que exercida ratione muneris."

O exercício do mandato parlamentar não confere a ninguém, por exemplo, a licença para cometer impunemente crimes contra a honra de terceiros. É claro que o Ministério Público, se quiser, provocado ou não, dispõe de elementos para pedir ao Supremo a abertura de inquérito contra Quaquá e contra os bolsonaristas. Aí já estamos na esfera penal. Tapa na cara, "viadinho" e injúria contra o presidente da República — ou contra qualquer outra pessoa — não se encaixam no conceito de "ratione muneris" — "em razão do cargo"

Não fosse assim, o Inciso X do Artigo 5º, o dos direitos fundamentais, não contemplaria até reparação material para quem tem a honra ferida — "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" —, e o Código Penal não consideraria crimes a calúnia, a injúria e a difamação. Ah, sim: como o STF já deixou claro, um parlamentar não tem licença, também, para incitar golpe de Estado, pregar a agressão a ministros do Supremo ou atentar contra o estado de direito. Vale dizer: a imunidade parlamentar não é um escudo para proteger criminosos.

Nenhum comentário: