A tese de Augusto Aras segundo a qual Bolsonaro não cometeu crime de prevaricação ao se abster de mandar apurar denúncia de irregularidades na compra da vacina Covaxin foi apresentada como se tivesse cara de lógica, rabo de lógica e rugido de lógica. Ao rejeitar o pedido do procurador-geral para arquivar o inquérito, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber sinalizou que a lógica de Aras é apenas um besteirol jurídico a serviço da blindagem do presidente da República.
"Não se sustenta", anotou Rosa em seu despacho, para informar que o pedido de Aras não fica em pé. Avesso à ideia de procurar qualquer coisa que deixe Bolsonaro em apuros, o procurador havia argumentado que o presidente não tem obrigação de agir porque a Constituição não menciona explicitamente entre suas atribuições a de mandar investigar suspeitas de crimes que cheguem a seu conhecimento.
Concedendo uma sobrevida à lógica, Rosa ponderou que, se a interpretação extravagante de Aras prevalecesse, o presidente da República estaria autorizado "a permanecer inerte mesmo se formalmente comunicado da existência de crimes funcionais em pleno curso de execução nas dependências da estrutura orgânica do primeiro escalação governamental".
A propósito, foi precisamente o que aconteceu no caso Covaxin. No célebre encontro com os irmãos Miranda, Bolsonaro foi alertado, em plena biblioteca do Palácio da Alvorada, sobre negociatas trançadas entre a pasta da Saúde e a Precisa Medicamentos. Prometeu acionar o "DG da PF", como se refere ao diretor-geral da Polícia Federal. Mas cruzou os braços, conforme admitiria posteriormente. O escândalo só não produziu prejuízos porque o estrondo implodiu a negociata.
Ávido por prestar o serviço de proteção a Bolsonaro, Aras abraçou uma fabulação do delegado federal William Tito, que estava encarregado de investigar o caso. Impossibilitado de negar a omissão que o próprio presidente reconhecera, o delegado concluiu que a inação de Bolsonaro não constitui prevaricação, crime previsto no Código Penal. Nessa versão, houve no máximo um descumprimento "do dever cívico, mas não o desvio de um dever funcional".
Na contramão de Aras, Rosa discordou: "Ao ser diretamente notificado sobre a prática de crimes funcionais (consumados ou em andamento) nas dependências da administração federal direta, ao presidente da República não assiste a prerrogativa da inércia nem o direito à letargia." Em casos do gênero, disse a ministra, o presidente precisa "acionar os mecanismos de controle interno legalmente previstos, a fim de buscar interromper a ação criminosa -ou, se já consumada, refrear a propagação de seus efeitos".
Tudo parece muito óbvio. Mas Augusto Aras, no afã de livrar a cara de Bolsonaro de queimaduras, adquiriu o hábito de esbarrar no óbvio, tropeçar no óbvio e passa adiante, fingindo desconhecer que o óbvio é o óbvio. Numa decisão absolutamente incomum, Rosa negou-se a arquivar o inquérito. Foi como se apresentasse o óbvio ao procurador-geral: "Aqui está, doutor Aras, eis o óbvio!"
Augusto Aras ainda não se deu por achado. Anunciou que recorrerá ao plenário do Supremo. O óbvio não tem trânsito na Procuradoria-Geral da República. Ali, a lógica está subordinada às conveniências de Bolsonaro. Para Rosa, Aras como que antecipou o julgamento da causa, metendo-se nas atribuições do Supremo.
A ministra escreveu: "Ora, se o procurador-geral da República for o único juiz de suas próprias postulações, de forma que a leitura normativa por ele proposta, no âmbito de uma causa penal, deva ser considerada vinculante para as demais instituições do sistema justiça, inclusive e sobretudo para esta Suprema Corte, haverá nítida inversão - desautorizada pela Carta da República - do arquétipo constitucional de divisão funcional do Poder."
O diabo é que, ainda que o processo siga o seu curso, caberá a Aras a palavra final sobre denunciar ou não Bolsonaro pelo crime de prevaricação. E o procurador já demonstrou que enxerga no trono do Planalto um político inimputável. Não é à toa que Bolsonaro se tornou um colecionador de inquéritos no Supremo. Perdeu o medo.
Por Josias de Souza
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