terça-feira, 22 de março de 2022

Folia pastoril no MEC: crime de responsabilidade e tráfico de influência


Milton Ribeiro, ministro da Educação: gravação, em democracia convencional, levaria à demissão imediata. No governo Bolsonaro, vale tudo... Imagem: Reprodução

Dois pastores que não têm cargo nenhum no governo nem ocupam função pública — Gilmar dos Santos e Arilton Moura — são hoje os interlocutores de prefeitos junto ao gabinete do ministro da Educação, o também pastor Milton Ribeiro. A dupla tem o comando de uma fatia dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Para conseguir recursos, prefeitos têm de contar com a sua mediação. A troco de quê? Até agora não se sabe.

Em conversa com prefeitos, a que estavam presentes os dois religiosos, Ribeiro afirmou:
"Porque a minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar".

E o ministro ainda deixou claro:
"Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar".

A gravação foi obtida pela reportagem da Folha.

A confissão do ministro, feita aos prefeitos, infringe a Lei 1.079 e constitui, pois, crime de responsabilidade, a saber:
Artigo 9º: São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.

Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:
4 - Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.

Art. 11. São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos:
1 - ordenar despesas não autorizadas por lei ou sem observância das prescrições legais relativas às mesmas

Nas mesmas transgressões incorre o presidente da República se o ministro estiver falando a verdade. E, convenham, ninguém tem razões para desconfiar da afirmação. Ainda que Ribeiro possa incorrer em algumas tolices adicionais, por conta própria, foi nomeado por Jair Bolsonaro justamente para fazer coisas erradas. E, convenham, nesse particular ao menos, raramente se viu um auxiliar tão dedicado.

Reportagem do Estadão do dia 18 revelou:
"O gabinete do ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi capturado por um grupo de pastores ligados a ele. Embora não tenham vínculos com a administração pública nem com o setor de ensino, segundo apurou o Estadão, eles formam um gabinete paralelo que facilita o acesso de outras pessoas ao ministro e participam de agendas fechadas onde são discutidas as prioridades da pasta e até o uso dos recursos destinados à educação no Brasil.

Com trânsito livre no ministério, os pastores atuam como lobistas. Viajam em voos da FAB, segundo registros do governo, e abrem as portas do gabinete do ministro para prefeitos e empresários. O grupo é capitaneado pelos pastores Gilmar Silva dos Santos, presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil, e Arilton Moura, assessor de Assuntos Políticos da entidade."

Informa ainda o Estadão:
"Estadão identificou a presença dos dois em 22 agendas oficiais no MEC, 19 delas com o ministro, nos últimos 15 meses. Algumas são descritas como reunião de 'alinhamento político' na agenda oficial de Ribeiro, que também é pastor.
Os pastores operam em duas frentes: levam prefeitos a Brasília, participando de encontros no MEC, e acompanham o ministro em viagens pelo País. No dia 16 de fevereiro último, Ribeiro e o pastor Arilton receberam, no gabinete do MEC, a prefeita de Bom Lugar, no Maranhão, Marlene Miranda (PCdoB), e o marido dela, Marcos Miranda. Segundo ele, a reunião foi para tratar da liberação de R$ 5 milhões para construção de uma escola na cidade. Miranda disse que 'o encontro foi agendado para tratar de assuntos do município, e não de igreja'. Questionado se foi preciso fazer uma contribuição ao pastor, respondeu: 'Que eu saiba, não'.

Há um trecho da conversa obtida pela folha que está prejudicado por algumas palavras inaudíveis, mas parece apontar para um lugar bastante ruim. Ribeiro afirma que há, sim, uma contrapartida à liberação de recursos:
"Então o apoio que a gente pede não é segredo, isso pode ser [inaudível] é apoio sobre construção das igrejas".

TRÁFICO DE INFLUÊNCIA
Se ministro e presidente cometeram crime de responsabilidade, os dois pastores, é inescapável, parecem se enquadrar no Artigo 332 do Código Penal, que trata de tráfico de influência. Transcrevo:
"332. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função.
Pena - Reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário."

Que se note: pouco importa aí se a vantagem é apenas espiritual.

TCU
Lucas Rocha Furtado, subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, pediu ainda na sexta que o tribunal apure se o MEC vem privilegiando evangélicos em sua agenda pública. Escreveu:
"Considerando o teor da reportagem transcrita, dando notícia das fortes pressões e lobby dos setores evangélicos sobre o Ministério da Educação, incumbe ao controle externo adotar as medidas cabíveis no sentido de verificar se está ocorrendo influência indevida de lideranças evangélicas no sentido de pautar a agenda e as políticas públicas, em prejuízo aos aspectos técnicos que devem conduzir as decisões, bem assim à isonomia e aos direitos individuais daqueles que não comungam das mesmas crenças religiosas".

Poucos se dão conta deste aspecto, a que alude Rocha Furtado: Se a discriminação negativa é inaceitável em qualquer caso, a positiva não pode servir para garantir privilégios, especialmente quando em prejuízo de terceiros, como é o caso.

Com a palavra o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Ou virá por aí mais um "procedimento preliminar"?

Em qualquer dos governos anteriores ao de Bolsonaro, o ministro da Educação já estaria na rua. Neste, há o risco de ser condecorado.

Por Reinaldo Azevedo

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