quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Violência política é inédita, mas Ciro vê "Lula fascistoide". Perdeu o eixo



Ciro Gomes, candidato do PDT à Presidência, faz uma escolha quando, a despeito da violência praticada por bolsonaristas, denuncia a existência de um suposto "fascismo de esquerda" no país e decreta a igualdade entre Lula e Bolsonaro. Na sua versão, caberia imputar ao PT um agravante: o partido seria o responsável pela eleição do atual presidente. Sim, é uma escolha, embora, confesso, eu não consiga entender a troco de quê. Talvez João Santana, o marqueteiro, o saiba. A única explicação plausível está em Ciro apostar na eleição de Bolsonaro na suposição de que, em 2026, seria mais fácil vencer o bolsonarismo do que o lulismo. Se for assim, não é uma suposição, mas uma irresponsabilidade.

O candidato do PDT fala uma linguagem e faz propostas que o situam, com alguma frequência, à esquerda de Lula. Ocorre que, ao investir com fúria contra o ex-presidente, agride a maior figura política da história do progressismo no país. Outras sofreram mais e correram mais riscos. Não estou criando um pódio de mártires, mas avaliando o tamanho da fortuna crítica e da experiência histórica da organização popular e partidária. A principal virtude do petista está, justamente, em jamais ter sido disruptivo. Ele compõe em vez de romper.

Se Ciro se apresentasse para a batalha como um radical do liberalismo ou, ainda mais na ponta, um fanático de direita, então esse ataque poderia lhe ser de algum proveito — na hipótese, é evidente, de que não houvesse um extremista mais audacioso, como há, para falar em nome da grei. Ocorre que, além das evidentes ofensas à honra que dispara contra o petista e sua família, o pedetista também o acusa de ser assim, um tipo de falso esquerdista — restando a ele próprio, Ciro, a suposta condição de genuíno portador da mudança.

Sempre há a hipótese de eu ser meio curto do entendimento, mas me pergunto com que público Ciro quer falar ou que eleitorado pretende formar para 2026. Parece-me, por ora, ter escolhido o mais confortável dos lugares, que é o de "crítico de tudo isso que está aí", lembrando um tanto a terceira via lá dos primeiros tempos, mas com muito mais agressividade. Sua candidatura está parecendo, neste momento, uma forma de milenarismo.

Estando certas as pesquisas, Lula tem, no primeiro turno, entre 40% e 45% do eleitorado; Bolsonaro, entre 30% e 35% — e, pois, se fala de algo entre 70% e 80%. Mais de 80% dessa gente se diz convicta e afirma que não vai mudar de ideia. Não é que Ciro apenas discorde dos respectivos nomes que escolheram. Ele os coloca na dimensão de tragédias. Dado que pretende concorrer na raia da esquerda e como jamais será um petista, a sua fúria se volta especialmente contra o ex-presidente. Creio que Ciro ainda não entendeu que ele só teria alguma chance de triunfar caso conseguisse o que nem a Lava Jato, com todo o aparato de Estado convertido à causa, conseguiu: destruir Lula e o PT.

E se Ciro estiver enxergando o que ninguém mais vê — e não é raro que ele passe tal impressão? Até hoje, não encontrei uma única pessoa que consiga explicar seu jogo fora das chaves ou do ressentimento (já de olho no futuro) ou da política como puro exercício da vontade — o que não o impede de estar certo numa crítica ou outra. Mas o Álvaro de Campos de "Tabacaria" poderia lhe dizer: "O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão", a fabular em suas mansardas. Para quem conhece o poema: não se trata da apologia do destino, mas da constatação de que é preciso fazer a coisa certa; não bastam as pretensões dos sonhadores de "mansardas". Ciro faz a coisa certa?

FASCISTOIDES
O agora mais duro crítico de Lula usa todos os canais que lhe franqueiam extremistas de direita do bolsonarismo para atacar Lula. Já virou uma dobradinha. Não são idiotas. Sabem que ele jamais roubará votos de Bolsonaro, mas veem ao menos a possibilidade de que a dupla artilharia (também a do Mito) prejudique o petista. E Ciro dispara: "Lula é fascistoide".

O candidato do PDT agora põe em dúvida as pesquisas e trata de modo pouco lisonjeiro admiradores seus, como Caetano Veloso e Tico Santa Cruz, artistas que há tempos lhe reconhecem virtudes políticas. Como aderiram ao voto útil em Lula, diz que o fizeram porque têm uma vida boa.

É mesmo? Ele próprio tem apenas 7% do eleitorado — 8% no seu Nordeste. Como analisar esse desempenho segundo o critério da "vida boa"? Então só essa parcela mínima, descontente com o que vê, quer mudar? Não faz sentido. Sabe-se lá o que será do PDT depois disso. Pergunta: Ciro se encaixa em algum partido de centro ou de direita?

A disputa política deste ano já fez cadáveres. Eleitores de Lula são cotidianamente perseguidos. Pesquisadores do Datafolha são ameaçados e espancados. Mas Ciro avisa: "Lula é fascitoide". E fascistoide seria também o voto útil. Não dá.

TESE TOLA
Posso compreender que Ciro, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (UB) combatam o expediente. Afinal de contas, caso a prática prospere no intento de derrotar Bolsonaro no primeiro turno, é claro que seus respectivos patrimônios eleitorais estarão sob ataque especulativo. Notem como escrevo: "intento de derrotar Jair Bolsonaro" em vez de "intento de eleger Lula". E isso vai ao centro da questão.

Voto é um dos instrumentos de intervenção do eleitor no processo político. Não se trata de um ato de fé. Pode-se votar em A ou B por várias razões. Uma delas é marcar posição, expressando, pois, a convicção, ainda que o nome escolhido não tenha chance de vencer ou de disputar um segundo turno. Foi o que fiz em 1989, por exemplo, com Ulysses Guimarães. Era a maneira que tinha de reconhecer o seu trabalho durante a Constituinte e a contribuição que dera na crise — que não houve — gerada pela morte de Tancredo Neves. Endossou a posse de Sarney, e o ambiente se desanuviou.

Mas também se vota para tentar impedir um evento que se considera perigoso para a democracia. E pode ser o caso de um segundo turno em 2022. Mais: posso, se quiser, usar o meu voto para tentar colocar o Candidato B no segundo turno, uma vez que o meu, o Candidato A, já tem o lugar assegurado. Afinal, rejeito que o Candidato C chegue lá.

A existência do segundo turno, diga-se, consagra o princípio do voto útil porque aqueles que não optaram por nenhum dos postulantes que chegaram à final são convidados a escolher o que consideram "menos pior". E nada impede que o eleitor faça isso logo na primeira etapa. O voto é um instrumento de intervenção política, não uma oração.

Tachar Lula de "fascistoide" — quando seus partidários são perseguidos e mortos, quando jornalistas são ameaçados, quando pesquisadores são espancados — sob o pretexto de combater o voto útil é evidência de que Ciro perdeu o eixo.

E, suspeito, ele deve achar que nunca viu com tanta clareza. Sabem como é: um excesso de luz gera escuridão.

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