segunda-feira, 12 de setembro de 2022

A marmita de Ilza, o empresário bolsonarista caridoso e a banalidade do mal



Há muita gente que tem reservas severas a Jair Bolsonaro, mas que ainda não entendeu a natureza do que está em curso e os riscos que corremos como sociedade.

A essa altura, todos conhecem o vídeo em que a diarista Ilza Ramos Rodrigues, de 52 anos, é humilhada pelo agroempresário bolsonarista Cássio Cenali na cidade de Itapeva, em São Paulo. Ele distribui marmitas para carentes, e Ilza era uma das pessoas que recebiam.

O homem decidiu gravar um vídeo que registra o seguinte diálogo:

Cássio: Nessa campanha de Bolsonaro, a senhora é Bolsonaro ou Lula?

Ilza: Eu sou Lula.

Cássio: Lula? Então tá bom aqui, ó. Ela é Lula. A partir de hoje, não tem mais marmita, tão bom? É a última marmita que vem aqui. A senhora peça pro Lula agora. Beleza? É a última marmita que vem para a senhora.

Ilza: Verdade? É sério?

Cássio: Sério. Tá bom, gente? Aqui não vem mais marmita. Ela vai pedir para o Lula. Tá bom? Beleza, então, gente.

Fica evidente que o vídeo é dirigido a outros que pensam como ele -- a tal "gente" -- e que Ilza está ali como uma espécie de bode expiatório, que recebe um castigo exemplar por "votar errado". Na semana passada, veio a público um outro vídeo, em que a empresária Roseli Vitória Martelli D'Agostini Lins -- da empresa baiana Imbuia Agropecuária LTDA, que produz soja no município de Luís Eduardo Magalhães -- recomenda a seus pares que demitam sem dó trabalhadores que votem em Lula. Expressou-se nestes termos:

"Eu queria falar algo para os nossos agricultores: façam um levantamento, quem vai votar no Lula e demitam. Demitam sem dó porque não é uma questão de política, é uma questão de sobrevivência. E você que trabalha com o agro e que defende o Lula, faça o favor, saia também".

Será que essa gente julga que pode estar a fazer algo errado? A resposta é "não". E isso é o pior. Porque estamos mesmo diante da banalização da maldade — ou, se quiserem, na expressão de Hannah Arendt, da "banalização do mal".

O vídeo, publicado primeiro pela plataforma "Jornalistas Livres", viralizou e foi visto por milhões de pessoas. Uma corrente de solidariedade se formou, inclusive para ajudar Ilza. Cássio, então, resolveu gravar um, digamos, testemunhal. Afirma:

"Eu sou o Cássio. Tou aqui para pedir desculpa pelo vídeo, pela infelicidade de ter feito esse vídeo. Estou muito arrependido. Faz mais de dois anos que eu faço 60 marmitas, toda quarta-feira, e entrego para morador de rua e inclusive para essa senhora. E não é isso que vai fazer eu parar com esse trabalho meu. É um trabalho que eu faço com recurso meu. Não tenho apoio político nisso aí, não tenho nada. Eu só quero a caridade. E eu tive, eu tou muito arrependido, a infelicidade de fazer esse vídeo. Só isso o que eu tenho de falar."

Circulam na rede informações de que responderia a processos por falta de pagamento de imposto e que teria recebido indevidamente mais de R$ 5 mil do Auxílio Brasil. Não dá para saber se estamos diante de um homônimo. Não importa. Acho que essas pessoas não têm noção da barbaridade moral que praticam. E não! Isso não as desculpa. Só evidencia o buraco em que estamos.

ECOS DA ESCRAVIDÃO
Querem saber? A tal empresária ignora o que é uma República em que os trabalhadores são "sujeitos" -- e, pois, portadores de direitos. Venderam sua força de trabalho, não sua cidadania. Que coisa!!! Não podendo mais possuí-los, situação em que fariam obrigatoriamente a sua vontade, então ela troca a posse pela sujeição voluntária. Acha que o patrão pode, ao comprar a mão de obra, expropriar os trabalhadores da sua vontade.

Talvez o tal Cássio consiga até colocar um tantinho de amor genuíno pelos desvalidos quando faz as tais marmitas. Desde, é claro, que estes não decidam dissentir das opiniões do doador generoso. Ele até entende as agruras por que passa um necessitado. Ele só não pode conviver com o fato de que tenham vontade própria.

É evidente que há, nos dois casos, reminiscências da escravidão, a que não falta nem mesmo a atualização simbólica do chicote. Não podendo mandar trabalhadores que votam em Lula para o tronco, então que vão para o olho da rua. Na impossibilidade de se impingir um castigo físico à necessitada rebelde, então que se a puna com a fome.

E, nos dois casos, ambos falam aos de sua estirpe em redes sociais ou aplicativos de conversa, espalhando a sua pestilência moral.

BANALIDADE DO MAL
Hannah Arendt usa a expressão "banalidade do mal" apenas duas vezes no livro "Eichmann em Jerusalém". Uma dela está justamente no subtítulo -- "Um relato sobre a banalidade do mal" -- e outra no trecho em que comenta o momento em que se concedem as últimas palavras ao assassino em massa, condenado à morte, e ele se expressa com parolagem de baixa retórica, até com certa animação, fugindo um pouco de seu tom quase sempre de burocrata do genocídio. E ela anota: "Foi como se, naqueles minutos, estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou -- a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos."

Não se deve entender a "banalidade do mal" como, se me permitem o neologismo, a "corriqueirização do mal". O sentido parece ser outro, dada a caracterização que ela faz de Eichmann — e que gera controvérsias porque há quem discorde da autora. Ainda que ela estivesse errada sobre ele, não errou no que me parece um achado psicológico e sociológico da maior importância.

Arendt trata Eichmann como um homem medíocre, de pensamentos limitados, disposto a obedecer, por mais pavorosas que fossem as ordens. E, talvez, pode-se especular, aquela fosse a condição da esmagadora maioria do povo alemão durante o nazismo. Quantos eram realmente os fanáticos como o próprio Hitler ou Goebbels, que resolveu "salvar" os filhos matando-os?

A banalidade, como resta claro no que ela própria escreveu, está na ausência de pensamento, de reflexão, de sentido moral. Leitoras, leitores, vamos ver: sabem aquela pessoa da família por quem você tem afeto e que passa a falar coisa absurdas, indecorosas, antiéticas, imorais, brutais mesmo? Em outras circunstâncias, fora da política, ela até pode ser boa e caridosa. Na vida familiar, mostra-se prestativa e afetuosa. Mas transferiu a Bolsonaro a competência para definir os inimigos da pátria e o modo como tratá-los. Ele ofereceu a ela um mundo que faz sentido, por mais estúpido que seja.

O bolsonarismo, como expressão de um entendimento da política, é ocorrência muito mais perigosa do que parece. É claro que encarna interesses econômicos que podem ser mapeados. Milhões de pessoas acreditam hoje que estão mesmo certas as coisas estúpidas que Bolsonaro diz sobre saúde, educação, pobreza, religião, segurança pública e armas, para ficar em alguns temas. A propósito: os tais CACs já foram capturados pelo crime organizado. Mas aquele seu tio continua a acreditar que a pistola na cintura é só uma questão de autodefesa e que "povo armado jamais será escravizado"... Será! Pelas milícias e pelo narcotráfico.

São ideias truculentas, impiedosas, discriminatórias e que matam. E estão banalizadas na boca das chamadas "pessoas de bem". E a história é rica em exemplos de cidadãos de bem que condescenderam até com crimes contra a humanidade.

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