segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Sob Bolsonaro, prevaricação é descuido cívico



Num esforço para imunizar Bolsonaro contra a desmoralização no caso Covaxin, o governo construiu no ano passado um enredo desconexo. O esforço revelou-se desnecessário.

A Polícia Federal chegou à inusitada conclusão de que o presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento.

O chefe da nação pode ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico", anotou o delegado federal William Tito Schuman Marinho no seu relatório final. Em pensar que o governo havia elaborado três versões para blindar Bolsonaro!

O presidente deu de ombros para uma denúncia. Foi levada à biblioteca do Alvorada pelo deputado bolsonarista Luis Miranda e o irmão dele, Luis Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões por uma vacina indiana mais cara do que as outras e jamais aprovada pela Anvisa.

Diante do escândalo, o então ministro palaciano Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, desqualificaram os irmãos Miranda. Acusaram-nos de usar uma nota fiscal falsa. Não colou. O documento era autêntico.

Alegou-se, então, que Bolsonaro avisou Pazuello sobre os malfeitos. Fez isso às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que Pazuello encomendou providências ao seu braço direito Elcio Franco, que permaneceria por mais alguns dias na pasta.

Nessa versão, o coronel teria constatado, com a velocidade de um raio, que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello anunciaria, por irregularidades insanáveis, a anulação do contrato. Esse balé de elefantes revelou-se um gasto inútil de criatividade e energia.

O inquérito policial foi remetido nesta segunda-feira à ministra Rosa Weber, do Supremo. Descerá também à mesa do procurador-geral Augusto Aras. O delegado William Marinho dispensou até o interrogatório do presidente. No final de um processo com mais de 2 mil páginas, anotou que não faz parte do "dever funcional" de Bolsonaro "comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento" aos órgãos de investigação como a Polícia Federal.

Se prevalecer essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico".

Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.

Por Josias de Souza

domingo, 30 de janeiro de 2022

O Trem-Bala morreu, mas sua estatal vive



A repórter Amanda Pupo revelou que a Valec e a Empresa de Planejamento e Logística, a EPL, deverão sobreviver à tentativa do ministro Paulo Guedes de fechá-las. Ambas nasceram em torno do Trem-Bala que ligaria o Rio a São Paulo, um sonho de Lula e de Dilma Rousseff, que estaria rodando para atender às torcidas da Copa de 2014. Uma, a Valec, abrigava o projeto; a outra, a EPL, abrigou seus destroços.

A sobrevivência dessas estatais mostra que, como o Fantasma das Selvas, elas são imortais. Do Trem-Bala já não se fala, mas a Valec e a EPL seriam necessárias, para ajudar, como consultoras, no desenho da política de transportes nacional. Em tese, reeditariam o falecido Grupo Executivo de Integração da Política de Transporte, o Geipot, criado em 1965 e extinto em 2008. Na prática, corre-se o risco de criar uma porta giratória.

O Geipot definiu a política de transportes nacional numa época em que predominava a balbúrdia. O czar da economia, Roberto Campos, pôs lá cabeças de primeira que arrumaram a casa, ocupando poucos andares no Centro do Rio. A partir de 1967, ele começou a desandar e, quando acabou, não houve choro nem vela. Em 2022, a máquina federal tem (ou deveria ter) instrumentos para cuidar do planejamento de rodovias, ferrovias e portos. Não precisa de mais uma camada burocrática.

O Trem-Bala foi uma boa ideia. Ligaria o Rio a São Paulo em poucas horas. Ela foi destruída pela inépcia e por malandragens. Não teve estudo de viabilidade nem projeto, sequer grandes empreiteiros interessados. Poderia custar US$ 15 bilhões. A Valec tornou-se um feudo do eterno Valdemar Costa Neto. Seu presidente, conhecido como Doutor Juquinha, passou uns dias na cadeia, e o sonho resultou apenas num litígio com um empresário italiano. Graças ao BNDES e ao Tribunal de Contas da União, a maluquice foi travada em 2011.

Em julho de 2012 o “Doutor Juquinha” (José Francisco das Neves) passou alguns dias na cadeia. Costa Neto patrocinou seu sucessor, no governo de Michel Temer.

A ideia do Trem-Bala já havia produzido uma estatal, a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade, a ETAV. Arquivado o trem, ela transmutou-se na Empresa de Planejamento e Logística, a EPL. Desde o início, ela pretendia ser um novo Geipot.

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, conhece essa história. Auditor da Controladoria-Geral da União, ele comandou a faxina de 2012 como interventor no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Na ocasião, referindo-se à situação do DNIT, ele disse: “O que fazem com ele é uma covardia”. Tinha menos servidores do que precisava, para se dizer o mínimo. Tarcísio assumiu o ministério supondo que fecharia a Valec e a EPL. Passaram-se três anos, não conseguiu fechá-las e voltou ao ponto de partida, com o “novo Geipot”. Isso num governo que tem um ministério da Infraestrutura e o DNIT. Haveria covardia maior?

Transformar a EPL em algo parecido com uma empresa prestadora de serviços de consultoria de transportes cria o risco de se criar uma porta giratória que nada herda do Geipot do tempo de Roberto Campos.

Paulo Guedes perdeu mais uma, na qual tinha razão.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Nova desculpa para manter estatais (Editorial do Estadão)



A existência de estatais deveria ser norteada por políticas públicas e por evidências de incapacidade de entrega por parte do setor privado

O governo pretensamente liberal de Jair Bolsonaro arrumou agora uma nova missão para justificar a existência da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) e da Valec, vinculadas ao Ministério da Infraestrutura. O secretário nacional de Transportes Terrestres da pasta, Marcello Costa, disse ao Estadão que há planos para que as duas companhias possam vender serviços de consultoria e de formulação de projetos às empresas interessadas em construir ferrovias por meio de autorizações. Essa ideia, segundo ele, poderia retirar as duas estatais da situação de dependência do Tesouro Nacional, condição em que é preciso contar com recursos do Orçamento para despesas com pessoal e de custeio.

A novidade é apenas mais uma prova da mentira contada na campanha de 2018, quando o então futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, prometia arrecadar R$ 1 trilhão em privatizações. Três anos se passaram, duas novas empresas públicas foram criadas e nenhuma foi vendida. O País hoje conta com 155 estatais, das quais 18 dependem de aportes da União – foram R$ 19,4 bilhões em subvenções em 2020, mais que o dobro do valor que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) terá para manter todas as rodovias neste ano. Para além do desperdício de recursos, é também uma evidente violação da Constituição, que em seu artigo 173 estabelece que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”, ressalvados casos previstos na própria Carta Magna.

Em tese, a existência de uma empresa como a EPL até teria justificativa. Inicialmente, ela foi criada para desenvolver o trem-bala, mas, com o fracasso do projeto, assumiu a tarefa de estruturar as concessões para oferecê-las à iniciativa privada, em etapas que vão desde os estudos de viabilidade até a assinatura do contrato. Ela é também responsável pelo planejamento da infraestrutura de transportes de longo prazo e pela integração entre os modais rodoviário, ferroviário, aeroviário e aquaviário nacionais, algo de importância incontestável e que deve ser liderado pelo setor público. Mas é justamente o sucesso dos leilões de infraestrutura, com forte interesse e disputa entre o setor privado, que dispensa a manutenção da Valec, palco de investigações por suspeitas de corrupção sob o comando de apadrinhados do PL, partido de Valdemar Costa Neto e, agora, do presidente Jair Bolsonaro.

A verdade é que o governo tem contado com o trabalho de servidores da EPL e da Valec para elaborar os projetos de infraestrutura nos últimos anos, no lugar do Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes (Geipot), criado em 1965 e extinto em 2002. Seria mais sincero, por parte do Ministério da Infraestrutura, debater a relevância dessa função de planejamento em vez de vender uma nova ilusão, segundo a qual a elaboração de projetos ao setor privado seria capaz de conferir autonomia econômica e financeira às companhias. Sobre a ideia anterior de fundir as duas companhias e enxugar custos, anunciada pelo próprio ministro Tarcísio de Freitas, nenhuma palavra: é como se nunca tivesse existido.

Por que razão empresas com capacidade de construir ferrovias de custo bilionário por conta própria teriam alguma dificuldade de contratar consultorias privadas e precisariam da expertise das estatais? Mesmo que isso acontecesse, qual seria a chance de a venda desses serviços superar o prejuízo anual que elas causam ao Tesouro? Sob o estrito argumento constitucional, tanto a EPL quanto a Valec já deveriam ter sido extintas, mas não se deve esperar nada de um presidente cujo único projeto é a reeleição. Privatizar, de qualquer forma, não deveria ser uma bandeira eleitoral em si mesma, mas parte de um plano de governo consistente cujo objetivo final seja a eficiência. Já a manutenção dessas empresas, se realmente necessária, deveria ser norteada por políticas públicas, além de evidências de incapacidade de entrega dos serviços por parte do setor privado.

Aversão oficial à vacina comprova que os governos também podem enlouquecer



A cruzada antivacina que mobiliza a administração Bolsonaro tornou-se uma evidência de que governos também ficam loucos. Os sinais de demência invadem o noticiário como enxurrada em dia de temporal.

A ministra Damares Alves, que se diz cristã e tem a atribuição de zelar pelos Direitos Humanos, colocou o Disque 100, canal de coleta de denúncias, a serviço da demência. A linha foi aberta para quem quiser "denunciar" violações como a exigência de comprovantes de imunização ou a vacinação de crianças na marra.

Simultaneamente, o ministro Marcelo Queiroga, supostamente responsável pela Saúde pública, negou pedido de secretários estaduais e municipais do setor para revogar imediatamente parecer do ministério pró-cloroquina.

Mais: Na quarta-feira, ao anunciar o envio de novas doses de vacinas pediátricas aos estados, a pasta da Saúde recomendou aos pais que procurem a recomendação de um médico antes da vacinação.

Pior: No início da semana, o site da Saúde divulgou nota para sustentar que a vacina contra covid não é obrigatória. Escorou a tese numa esperteza: a vacina contra covid não foi incluída no PNI (Programa Nacional de Imunizações). Consta apenas do PNO (Plano Nacional de Operacionalização da vacinação).

Os movimentos podem ser resumidos com duas palavras: sabotagem e crime. O governo retarda a compra de vacinas. Obrigado a adquirir os imunizantes, puxa o freio de mão. Distribui em conta-gotas. E cria uma rede institucional de para produzir entraves, falsas exigências e desinformação.

A conspiração instila dúvidas num momento em que o número de crianças internadas em UTIs cresceu 94%. Junto com a infecção, cresce a impunidade dos sabotadores, a começar por Bolsonaro. Ninguém mais fala nos crimes em série levantados pela CPI da Covid.

Por Josias de Souza

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Bolsonaro hipoteca o futuro (Editorial do Estadão)



Cortes na educação em 2022 afetam especialmente a educação básica. Bolsonaro despreza até o que seria,segundo o discurso, uma prioridade do governo

O governo Bolsonaro é ruim em muitas áreas, mas é especialmente sofrível na educação. Ao longo desses três anos, o presidente deu mostras seguidas de que desconhece a importância da educação para o presente e o futuro do País, como também não faz ideia do papel que a União deve ter na coordenação e no diálogo com Estados e municípios a respeito das políticas educacionais. Trata-se de um escândalo completo, mas é também a natural decorrência da própria natureza do bolsonarismo. Um grupo que só se dedica a destruir é necessariamente incompetente para lidar com uma área cuja essência é construir.

O governo Bolsonaro destrói até o próprio discurso. Sem nunca ter apresentado nenhuma proposta para a educação, o bolsonarismo optou pelo caminho das ideias simplistas – e equivocadas. Por exemplo, mais de uma vez, o Ministério da Educação de Bolsonaro criticou a ampliação do acesso ao ensino universitário, como se fosse um capricho caro, desnecessário e incapaz de contribuir para a produtividade do País. A prioridade bolsonarista seria a educação básica, que inclui as três etapas iniciais: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

É uma obviedade, diga-se de passagem, priorizar o ensino básico. Ninguém discorda dessa ideia, nem mesmo quem defende ampliar o acesso à universidade. Afinal, a educação básica de qualidade é condição para qualquer avanço na formação das novas gerações.

No entanto, nem mesmo aquilo que seria, em tese, uma prioridade do governo Bolsonaro é levado a sério. Os vetos de Jair Bolsonaro relativos ao orçamento do Ministério da Educação de 2022 atingiram especialmente a educação básica. De um total de R$ 739,9 milhões de cortes na área educacional, R$ 402 milhões referem-se à educação básica, segundo o Todos Pela Educação.

A entidade emitiu um parecer mostrando preocupação com a decisão do governo. “A retomada das aulas presenciais, com todas as implicações decorrentes da pandemia, não suporta o corte no montante previsto e aprovado pelo Congresso na forma de emendas de comissão e de previsão de despesas discricionárias. Foram atingidas pelos vetos ações de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) relacionadas ao desenvolvimento da Educação Básica (R$ 325 milhões), infraestrutura (R$ 55 milhões) e transporte escolar (R$ 22 milhões). Essas ações são utilizadas para apoiar Estados e municípios na educação básica, especialmente em programas estratégicos, como o fomento às escolas de ensino médio em tempo integral”, disse a nota.

Além disso, essas programações de investimento já vinham sendo objeto de baixa execução por parte do Ministério da Educação. Por exemplo, até o segundo quadrimestre de 2021, houve queda de 63% na dotação discricionária de infraestrutura da educação básica. O Todos Pela Educação alerta que a falta de prioridade do governo em relação à educação básica coloca Estados e municípios “à mercê das indicações de emendas impositivas e de relator”.

Esta é a realidade do governo Bolsonaro: incompetência, omissão e confusão. Nunca é demais lembrar que Jair Bolsonaro chegou ao acinte de nomear para a chefia do Ministério da Educação o sr. Abraham Weintraub, aquele que, no cargo, bateu recordes de ineficiência e agressividade e ainda saiu às pressas do País, após ser incluído como investigado no inquérito referente a ameaças contra o Supremo Tribunal Federal. Como se isso não bastasse, o sr. Milton Ribeiro, sucessor de Weintraub, é também especialmente hábil em manifestar sua absoluta falta de afinidade com a administração de políticas públicas educacionais.

Enquanto corta verbas do ensino básico, Bolsonaro se esforça para manter e até mesmo ampliar os recursos requeridos por parlamentares para se promoverem e disputarem eleições. Ou seja, Bolsonaro hipoteca o futuro das crianças – que não votam – para pagar a conta de sua sobrevivência política. Assim, a passagem de Bolsonaro pelo poder deixará sequelas terríveis nas próximas gerações.

Os reaças de Bolsonaro lhe tiram o que lhe dão. Deveríamos lhes ser gratos?


Bolsonaro fala com seus apoiadores no cercadinho. O que eles querem dele? O discurso reacionário! E ele nao se faz de regoado Imagem: Reprodução

Ninguém com um tanto de informação tinha o direito de duvidar de que o governo de Jair Bolsonaro seria marcado por uma soma de exotismos, esquisitices e idiossincrasias. Afinal de contas, haveria de espelhar a mentalidade do líder, que teve uma trajetória de quase 30 anos na Câmara marcada pela irrelevância.

A primeira dificuldade já surgiu na montagem da equipe. Bolsonaro não conhecia ninguém porque ninguém o levava a sério. Tinha, vá lá, dois âncoras: Paulo Guedes e Sergio Moro. O primeiro cuidaria da área econômica, e o outro responderia pela moral de propaganda — como se já não fosse imoral o bastante saltar da 13ª Vara Federal de Curitiba para o Ministério da Justiça...

Os sensatos esperavam muita coisa ruim do casamento anunciado por Guedes entre "liberais e conservadores". Até porque os falsos liberais eram só picaretas, e os falsos conservadores, reacionários asquerosos. Deu no que deu.

Guedes se transformou num agente imobiliário especializado em vender terrenos na Lua; Moro foi chutado do governo porque juntou a incompetência à ambição de tomar o lugar do próprio Bolsonaro, e este se deixou cercar de extremistas ainda mais idiotas do que ele próprio e achou que era uma boa ideia dar início a movimentos de rua de apelo escancaradamente golpista — inicialmente, note-se, com o apoio dos moristas.

Mas aí veio a pandemia, e a ruindade degenerou em loucura, que é o estágio em que estamos agora. A doença deu a Bolsonaro a chance de desenvolver a sua obsessão contra a vacina — em consonância, sim, com a extrema direita mundo afora. Mas ele é o único governante do Planeta que segue com a militância antivacina.

"Ora, Reinaldo, é o governo federal que comanda a vacinação". Assim é por imposição de uma institucionalidade que o ogro herdou e contra a qual, diga-se, luta até agora. O Ministério da Saúde acaba de fazer uma leitura estúpida da lei para excluir a vacina contra a covid da imunização obrigatória das crianças, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diretriz da pasta sugere que pais busquem prescrição médica para vacinar seus filhos. Queiroga ainda não revogou o documento criminoso que afirma, com todas as letras, que a hidroxicloroquina é efetiva no combate à covid-19, mas não as vacinas.

Em meio a sucessivos recordes de contaminação, que governo sugeriria aos pais que fossem a unidades públicas de saúde, levando suas crianças, em busca de uma prescrição para a vacina? A resposta poderia ser esta: um governo infanticida.

Temos, como país, de rever muita coisa, inclusive na esfera legal. Um governante ou agente público qualquer podem mesmo criar obstáculos à vacinação sem que sejam imediatamente contidos, pagando por seu crime? A liberdade religiosa abriga a sabotagem à imunização? Aceita-se o banditismo em nome de Deus?

PAVOROSO, MAS ATENDE À CLIENTELA
Tudo isso é, sim, pavoroso e seduz, felizmente, a minoria. Mas, ainda assim, trata-se de uma minoria bastante expressiva.

Parece haver algo de estúpido quando se diz que Bolsonaro sabota a vacina por populismo. O marciano haveria de indagar se um populista não é aquele que oferece aparentes facilidades ao povo, sem olhar para as contas, inflamando-lhe as paixões e oferecendo-lhe felicidades de curto prazo que cobram um preço altíssimo depois. Sim, meu caro marciano, o populismo poderia ser assim definido.

O de Bolsonaro é de uma outra espécie. Quando se lançou de peito aberto na pregação negacionista, vocalizando teorias conspiratórias sobre o "vírus chinês", certamente imaginava que a pandemia teria curta duração. À medida que suas teses foram sendo desmoralizadas pelos fatos, teve de dobrar a aposta em rodadas sucessivas, mantendo mobilizado seu eleitorado fiel, que se alimenta da sua loucura e lhe fornece, igualmente, a ração diária de sandice.

Não venham me dizer que alguém, em algum momento, anteviu que algo assim poderia acontecer. Bolsonaro é o populista da parcela minoritária fiel a seus postulados e que, tudo indica, não está disposta a mudar de ideia. E é uma gente muito aguerrida. Se o presidente começasse a defender a vacinação em massa e cedesse aos postulados da ciência, poderia ser abandonado por parcelas consideráveis de seus admiradores.

COLOQUEMOS A ELEIÇÃO NO JOGO
Nesta quarta, foram divulgados números da pesquisa Ipespe. Com 44% dos votos nos dois cenários testados, Lula poderia vencer a eleição no primeiro turno. Bolsonaro aparece em segundo lugar, com 24% ou 26%. Sergio Moro (Podemos) e Ciro Gomes (PDT) empatam em 8%, na simulação em que João Doria (PSDB) tem 2%. Na outra, sem o ex-juiz, Doria fica com 4%, e Ciro vai a 9%.

Não! Os números não são bons para o presidente. No segundo turno, Lula venceria a todos, e Bolsonaro perderia para todos. A avaliação sobre o seu governo também bate recordes negativos.

Com o discurso que tem, o presidente parece caminhar para uma derrota. Tenho cá para mim que, se não tivesse se lançado na cruzada antivacina lá nos primórdios, surfando no auxílio emergencial, talvez a realidade fosse outra. Não dá para contar a história que não houve. Mas dá para contar, com espanto, a que há.

Fazendo e falando as barbaridades que faz e fala, Bolsonaro tem quase um terço do eleitorado no primeiro turno, muito à frente do terceiro lugar. Moro é igualmente um reacionário — em certos aspectos, mais do que o presidente. Mas não pode fazer o discurso antivacina. Doria, que ajudou a imunizar o Brasil tanto com a CoronaVac como forçando o governo a se mobilizar, aparece com 2% ou 4%.

O que quer o eleitorado de Bolsonaro? Um candidato da direita democrática, conservador, que é eficaz na gestão, que não dá mole para as esquerdas? Huuummm... Poderia ser Doria, não é? Ah, mas ele é o cara da vacina. Tampouco serve Moro. Não que este valente esteja empenhado em defender a imunização... Costuma ficar longe do assunto. De toda sorte, não tem como falar contra a ciência — ou perde apoios importantes na mídia.

Fiquem certos: Bolsonaro vai radicalizar o discurso antivacina. Se passasse a ser um discípulo da ciência, correria o risco de ser trocado porque estaria traindo os seus fiéis. Os seus devotos servem para lhe dar o segundo turno — se Lula não vencer no primeiro —, mas lhe tiram a eleição.

Por Reinaldo Azevedo

Bolsonaro promete bomba e explode um traque



Num movimento coordenado, a máquina eletrônica do bolsonarismo passou a quinta-feira trombeteando nas redes sociais que Bolsonaro o explodiria uma bomba contra Lula em sua live da noite de quinta-feira. Era propaganda enganosa.

Com o auxilio luxuoso do presidente do BNDES, Bolsonaro apresentou dados requentados sobre escândalos antigos do BNDES. Um traque.

Até as estantes da biblioteca do Alvorada sabem que, nos governos de Lula e Dilma, o BNDES especializou-se em conceder empréstimos a empresas e ditaduras companheiras. Produziu escândalos como o da JBS e calotes como os de Cuba e Venezuela.

Na campanha de 2018, Bolsonaro disse que abriria uma caixa-preta que, na verdade, já havia sido escancarada. Na Presidência, demitiu numa entrevista do cercadinho o presidente do BNDES, Joaquim Levy. Alegou que ele demorava a abrir a inexistente caixa preta.

Bolsonaro chega ao último ano de sua gestão disparando tiros de festim ao lado de Gustavo Montezano, um amigo de infância dos filhos que ele recrutou para o lugar de Levy.

A certa altura, o capitão reconheceu que não há mesmo caixa-preta a ser aberta. E admitiu que as transações ruinosas do BNDES foram trançadas dentro da lei, com aval legislativo. O único punido foi o Estado, que ficou com o calote.

Bolsonaro disse que a terceira eleição de Lula seria como o retorno de um criminoso à cena do crime. Estrela de processos que correm no STF e no TSE, alvo de uma penca de indiciamentos na CPI da Covid, Bolsonaro é entendido na matéria criminal. Melhor não discutir com um especialista.

Por Josias de Souza

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Lula trata Dilma como um bambolê anacrônico



Na campanha presidencial de 2006, quando mediu forças com Geraldo Alckmin, Lula grudou no então rival o carimbo de privatista. Disse que ele venderia as estatais que Fernando Henrique Cardoso não teve tempo de leiloar quando passou pelo Planalto. Nessa época, o tucanato escondia FHC. Alckmin limitou-se a negar que planejasse vender a Petrobras e o Banco do Brasil, abstendo-se de defender o correligionário. Passados 16 anos, Lula empurra sua criatura Dilma Rousseff para o armário e transforma o ex-tucano Alckmin numa espécie de herói do petismo na cruzada anti-Bolsonaro.

Na mesma entrevista em que declarou que a conversão de Alckmin em vice de sua chapa será bom para o país, Lula descartou a hipótese de utilizar a mão de obra de Dilma no seu eventual terceiro mandato. "O tempo passou, tem muita gente nova no pedaço...", declarou. Na definição de Lula, Dilma é "tecnicamente inatacável", mas "erra na política". Não tem "paciência" para "conversar" com políticos e rir das piadas que já conhece.

Sob Dilma, a economia brasileira encolheu 6,8%. Graças ao seu governo empregocida, a taxa de desemprego saltou de 6,4% para 11,2%. Foram ao olho da rua algo como 12 milhões de trabalhadores. Lula e o PT só lembram de Dilma quando querem fazer pose de vítimas de um "golpe". O diabo é que madame foi deposta por seus aliados, sob regras constitucionais, numa sessão presidida pelo amigo Ricardo Lewandowski, que representava a Suprema Corte.

Na visão idílica do PT, o abismo econômico foi cavado pelo MDB de Eduardo Cunha e de Michel Temer. O diabo é que, no limite, Lula é o principal responsável pela perversão. Foi nos mandatos de Lula, sobretudo no segundo, que o MDB de Temer virou sócio do PT na indústria de propinas. Foi Lula quem abençoou a conversão de Temer em vice na chapa de Dilma, vendida por ele como "gerentona infalível".

Lula agora precisa explicar ao eleitor porque o ex-rival Alckmin virou herói da resistência e Dilma recebe o tratamento de um estorvo anacrônico, como um bambolê sem cintura política, uma esquisitice antiga.

Por Josias de Souza

As vítimas da crise moral (Editorial do Estadão)



Nos últimos dois anos, a população em situação de rua na cidade de São Paulo cresceu 31%, conforme o Censo da Prefeitura. Nas zonas sudeste e sul, o número mais do que dobrou. Na Subprefeitura da Mooca o aumento chegou a 170%. O Censo aponta um crescimento de 330% de locais com moradias improvisadas. A quantidade de pessoas abordadas acompanhadas de um integrante da família aumentou de 20% para 28,6%, o que mostra um perfil mais familiar das pessoas em situação de rua. O retrato da maior e mais rica metrópole do Brasil é apenas um relance de uma desgraça que se alastra por todo o País.

As causas são multidimensionais. Há o drama de fundo civilizacional, não só no Brasil, de uma cultura individualista que degrada as relações familiares. Há a desigualdade histórica radicada nas estruturas socioeconômicas nacionais. Há a crise econômica precipitada pelo governo Dilma Rousseff e agravada pelo governo Jair Bolsonaro. E há, claro, o impacto da pandemia – também agravado por Bolsonaro.

A insensibilidade do governo ante a tragédia, acompanhada em tempo real, de centenas de milhares de brasileiros vitimados pelo vírus despertou reações contundentes na mídia e na arena política, por exemplo, com a CPI da Covid.


Mas, enquanto a epidemiologia estima que em 2022 a pandemia tende a ser dissipada, seus impactos socioeconômicos, muito mais difusos, devem perdurar por anos. Hoje, mais de 20 milhões de brasileiros se alimentam dia sim, dia não; 5 milhões de crianças vão dormir com fome. Com muito menos representatividade, as vítimas da miséria tendem a ser absorvidas nas estatísticas e amortizadas como um fato “natural” do “novo normal”.

Tal como a causa da catástrofe é multidimensional, assim deve ser a sua solução. Há o desafio cultural do resgate da família como alicerce da sociedade. Há também o apelo à solidariedade. Sob o impacto da primeira onda da pandemia, as ações humanitárias cresceram espetacularmente. Segundo o Grupo de Instituições e Fundações de Empresas, os investimentos sociais das empresas sofreram mesmo uma mudança de perfil e o combate à fome e à pobreza entrou com mais força no rol de prioridades. Ainda assim, em comparação com outros países, os indicadores de filantropia no Brasil permanecem medíocres e, desde 2020, a curva de doações se achatou.

Mas, acima de tudo, há responsabilidade do Poder Público. A amplificação e a intensificação dessa tragédia anônima, silenciosa e difusa têm relação direta com uma mentalidade anticidadã cujo epicentro é o Palácio do Planalto. Na virada de 2020 para 2021, no pico da crise sanitária e econômica, o auxílio emergencial sofreu um apagão, enquanto o presidente passeava pelo litoral e os congressistas, em recesso, negociavam a troca da liderança do Senado e da Câmara.

Hoje, enquanto toda uma nova população de famélicos e desabrigados circula de mãos abanando pelas ruas do País, nos corredores do Congresso os representantes do povo consomem seu tempo discutindo o rateio do butim orçamentário. As disputas por pedaços dos recursos da República para satisfazer interesses corporativistas, clientelistas e patrimonialistas expõem imensas parcelas da classe política incapazes de estabelecer verdadeiras prioridades, de deliberar políticas públicas para garantir condições mínimas de moradia e alimentação e de preservar recursos para gastos e investimentos sociais.

Assim como em outras áreas da administração pública, na questão social não há nada a esperar do governo Bolsonaro. O melhor que as forças cívicas podem fazer é uma política de redução de danos. A responsabilidade dos governos regionais aumenta exponencialmente. Mas é preciso que o drama dos vulneráveis entre com força nos debates eleitorais. O eleitorado precisa se imunizar contra a demagogia de candidatos que estão entre os grandes responsáveis por essa tragédia humanitária, sobretudo os próceres do lulopetismo e do bolsonarismo, e promover uma cobrança sem trégua por políticas sociais sustentáveis àqueles que se postulam como candidatos da renovação.

Imunidade turbinada: estudo mostra que infecção por Covid-19 complementa vacina e cria superproteção


Micrografia eletrônica de varredura colorida mostra célula fortemente atacada pelo SARS-Cov-2 (em vermelho) Foto: NIH/Divulgação

A combinação da vacinação e da infecção natural, independente da ordem dos eventos, é capaz de criar uma “superimunidade” contra a Covid-19. A conclusão é de um estudo da Universidade Oregon Health & Science, nos EUA, publicado na revista Science Immunology.

De acordo com a pesquisa, a quantidade de anticorpos no sangue de pessoas que foram infectadas após a vacinação — e vice-versa — é dez vezes maior do que aquela gerada apenas pela imunização. O estudo foi realizado antes do surgimento da Ômicron, mas os cientistas esperam que as respostas imunes híbridas sejam semelhantes para a nova variante, altamente transmissível.

Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, esse resultado reforça o que já foi mostrado em trabalhos anteriores e adiciona uma nova via para a superimunidade.

— Esse estudo mostra que a pessoa que se infectou deve se vacinar. Ele reforça o que sabíamos até agora. Mas o mais interessante é que ele mostra que a pessoa que se vacinou, se for infectada, está superprotegida também. Ainda não havia evidências sobre isso — diz o médico Salmo Raskin, geneticista e diretor-médico do Laboratório Genetika, de Curitiba.

Investigação

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram a reposta imunológica de 104 pessoas que estavam vacinadas contra a Covid-19. Elas foram divididas em três grupos: 42 vacinados sem contágio prévio, 31 que receberam imunizante após uma infecção e outros 31 que foram infectados depois da vacinação. Em seguida, os cientistas coletaram sangue dos participantes e as amostras foram expostas em laboratório a três variantes do Sars-CoV-2: Alfa (B.1.1.7), Beta (B.1.351), e Delta (B.1.617.2).

Os resultados mostraram que os dois grupos com “imunidade híbrida”, composto por aqueles que foram vacinados depois de serem infectados e vice-versa, geraram os maiores níveis de anticorpos em comparação com o grupo que foi apenas vacinado. Em ambos os casos, a resposta imune medida no soro sanguíneo revelou anticorpos igualmente mais abundantes e pelo menos dez vezes mais potentes do que a proteção gerada apenas pela vacinação.

— Quanto mais exposição aos antígenos, maior o benefício. Se a pessoa teve Covid-19, por exemplo, a vacina vai estimular, selecionar e expandir as células de defesa que a infecção natural selecionou — explica Raskin.

Embora a infecção natural e a vacinação estimulem o sistema imunológico, elas agem de maneira diferente. Portanto, acrescenta o geneticista, há complementação.

O infectologista Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), acrescenta que a imunidade híbrida gera uma resposta mais robusta não só em níveis de anticorpos, mas em outras frentes da defesa, como a imunidade celular, na qual linfócitos B de memória são capazes de reconhecer agentes infecciosos.

Há alguns trabalhos que indicam que a imunidade híbrida é mais eficaz para prevenir novas infecções e também para reduzir a transmissão. Entretanto, vale ressaltar que isso não significa que pessoas que apresentam esse tipo de imunidade podem abandonar os cuidados preventivos. Para começar, ainda não existem estudos que mostrem, na prática, o quanto esse reforço se traduz em proteção. Além disso, também não se sabe qual é a duração dessa defesa.

— A maioria dos estudos disponíveis é feita em laboratório. Elem apontam um sentido, mas não são categóricos. Para responder essas questões, é preciso realizar estudos de mundo real, que não são simples de serem feitos. Mas são eles que vão comprovar se, na prática, esse aumento da resposta imunológica se traduz em menos infecções, por exemplo. Além disso, outras variáveis precisam ser observadas, como a vacina recebida, o tempo entre a vacinação e a infecção, as variantes circulantes, o desfecho considerado (se são formas mais graves ou mais leves). Ainda tem muita coisa sem resposta, mas é uma construção de conhecimento — diz Kfouri.

Intervalos

Um estudo publicado em setembro na revista Nature alertou, por exemplo, para a necessidade de considerar o momento em que a infecção aconteceu e também o período da vacinação, porque até mesmo a imunidade híbrida varia entre os indivíduos. Para explicar, Raskin faz uma analogia com a imunização. Tomar várias vacinas seguidas, sem respeitar um intervalo mínimo entre as doses, por exemplo, não se traduz em maior proteção contra o coronavírus.

— Há um consenso de que um maior intervalo entre as doses se traduz em maior proteção, justamente porque dá tempo para o organismo produzir a resposta imunológica, e só quando ela começa a cair é a hora de pensar em ativá-la novamente — destaca.

Apesar dessas lacunas e do estudo não ter avaliado especificamente a proteção da imunidade híbrida contra a Ômicron, especialistas estão otimistas com a possibilidade de as características da variante, capaz de infectar pessoas já vacinadas, ajudarem a multiplicar as pessoas superimunes à Covid-19 e, assim, aproximar o mundo do fim da pandemia.

“Esses resultados apontam para um momento em que o Sars-CoV-2 pode tornar-se uma infecção endêmica leve, como uma infecção sazonal do trato respiratório, em vez de uma pandemia”, salientou um dos autores, Marcel Curlin, especialista em infecciologia na universidade norte-americana, em comunicado.

Em O Globo

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Um país tolerante com os privilégios (Editorial do Estadão)



Autoridades executivas e legislativas são coniventes com a notória assimetria entre o tratamento de privilegiados do setor público e o brasileiro que luta para sobreviver

Para o brasileiro comum, que em média obteve R$ 2.449 de renda real de todos os trabalhos no terceiro trimestre de 2021, deve causar indignação a notícia de que em empresas estatais controladas pela União a média de salários chega a R$ 34,1 mil. Trata-se, como mostrou o Estado, da média do que recebem os contratados da estatal PPSA, que administra a parte da União no petróleo do pré-sal. Em outras estatais, a média passa de R$ 20 mil.

Como se trata de média, há, obviamente, muitos que ganham acima ou abaixo dela. Há, para exemplificar, o caso de um empregado da Petrobras que recebe, regularmente, R$ 145,1 mil por mês. Se o brasileiro comum for advertido de que, na última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento real médio foi 11,1% menor do que o de um ano antes, quando a pandemia assolava duramente o País, terá mais motivos para indignar-se.

Se a isso se somar o fato de que mesmo os que conseguem manter uma ocupação nos duros tempos por que passa o País estão sempre sujeitos a encorpar as já altas estatísticas de desemprego – risco com que não precisa se preocupar a maior parte dos que recebem altíssimos vencimentos no setor público –, ainda mais evidente ficará a disparidade da realidade do mercado de trabalho do brasileiro comum e a situação dos empregados das estatais. Ganhar muito mais do que a média paga pelo setor privado para funções semelhantes não é a única vantagem dos funcionários das estatais. Boa parte deles tem benefícios praticamente inexistentes nas empresas particulares, como pagamento quase integral pela estatal dos planos de saúde e benefícios previdenciários excepcionais, igualmente cobertos pela empregadora.

Além da renda real em queda, o mercado de trabalho brasileiro continua marcado por altas taxas de desocupação, de subemprego e de desalento. A baixa atividade econômica, pressionada pelas incertezas quanto ao comportamento de um governo que vem prejudicando o País há três anos, associada à inflação alta, não indica nenhuma melhora para a vida de dezenas de milhões de trabalhadores brasileiros.

Este é mais um dos fossos que a apropriação por grupos privilegiados de vantagens do Estado brasileiro cria na sociedade. Há uma elite sustentada por recursos públicos, que não está sujeita aos riscos que afetam todos os demais cidadãos, e o resto, os que a sustentam.

Há poucos dias, comentamos nesta página o caso da voracidade com que elites privilegiadas dentro do setor público justificam e defendem vantagens, como o recebimento, por um procurador regional, de R$ 446 mil apenas no mês de dezembro. Também há outras categorias de servidores públicos que, como os empregados das estatais, recebem salários muito superiores à média auferida pelo brasileiro comum e até mesmo pela grande parte dos funcionários federais, mas nunca estão satisfeitas. Sempre querem mais, e aproveitam qualquer pretexto – o mais recente é o anúncio, pelo presidente Jair Bolsonaro, de aumentos para policiais federais, policiais rodoviários federais e agentes penitenciários – para ameaçar o governo com paralisações e operações-padrão se não forem atendidas em suas reivindicações salariais.

O que espanta é a tolerância, talvez mais precisamente conivência, de autoridades executivas e legislativas com essa situação de notória assimetria entre o tratamento de privilegiados do setor público e a situação do brasileiro que, no mundo real acossado pela pandemia e pela crise econômica, luta para manter alguma forma de rendimento para sustentar a si e suas famílias.

Há anos se fala da necessidade de se combater os privilégios de que gozam boa parte dos funcionários públicos e os empregados das estatais. Esses privilégios geram uma espécie de Brasil de primeira classe, distinto do país dos demais cidadãos. Nada tem sido feito de eficaz contra essa situação. Trata-se de uma tolerância coletiva injustificável num país tão desigual e onde a pobreza voltou a crescer. Até quando seremos uma nação tão indulgente com privilégios?

Cúpula de novo partido de Bolsonaro reúne acusados de corrupção e até de tortura



Ao escolher o PL para concorrer à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro se alia, nos Estados, a dirigentes partidários que são réus em ações penais. Os processos variam de desvio de verbas em obras de rodovias a sequestro e cárcere privado. Entre os presidentes regionais de siglas que vão organizar o palanque de Bolsonaro Brasil afora há, ainda, um condenado por tortura e um deputado envolvido no mensalão, esquema operado pelo primeiro governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Levantamento do Estadão sobre o histórico judicial dos presidentes estaduais do PL mostra que ao menos 18 dos 27 dirigentes foram ou ainda são alvo de algum tipo de investigação. Destes, quatro respondem a processos que se arrastam na Justiça e dois tentam reverter condenações.

Para se filiar à legenda, Bolsonaro não fez ponderações sobre ficha corrida dos responsáveis pela sua campanha.

Todos os presidentes do PL nos Estados estão nos cargos com o aval do ex-deputado Valdemar Costa Neto. Dono do partido, ele foi condenado e preso no mensalão, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, quando apoiava o governo do PT. Agora, está integrado ao grupo de Bolsonaro e vai influenciar a campanha à reeleição, com poder direto no futuro comitê. O clã presidencial considera o mensalão apenas uma “cicatriz” na vida do dirigente partidário. O lançamento da pré-candidatura está previsto para o próximo sábado, dia 29.

Em São Paulo, onde Bolsonaro quer eleger o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, o presidente do partido é José Tadeu Candelária, um homem de bastidor que há vários anos conta com a confiança de Costa Neto. Segundo o doleiro Lúcio Funaro, delator do mensalão, era o homem indicado por Costa Neto para receber dinheiro vivo do esquema no escritório do partido na capital paulista, em 2003. Procurado por meio do diretório, Candelária não deu retorno.

O caso de tortura envolve Flavio de Paula Canedo, presidente do PL em Goiás. Ele é marido da deputada federal Magda Mofatto, também do partido. Em 2020, Canedo foi considerado ficha-suja. O dirigente do PL tenta no Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverter a condenação a cinco anos de prisão, no regime semiaberto, confirmada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Está inelegível por oito anos.

Narra a denúncia que, em 2002, Canedo e dois comparsas torturaram e ameaçaram Frederico Daniel de Carvalho, para tentar uma confissão dele sobre o furto de uma espingarda. Eles convidaram o homem para uma festa, onde o golpearam com uma paulada na cabeça. Depois, tentaram afogá-lo enfiando a cabeça numa bacia com água; ataram pernas e braços com uma corda que passava pelo pescoço e, com um cordão fino, amarraram e puxaram a língua do rapaz.

Para desembargadores e ministros que analisaram o caso e rejeitaram recursos da defesa, ficou comprovado que o crime foi premeditado e que Canedo agiu para “atrair a vítima para o local dos fatos com o propósito específico de submetê-lo a sessões intermináveis de torturas”. Em sua defesa, ele diz que a principal prova é a palavra do torturado. Procurado por meio do diretório do PL e de advogados, Canedo não se manifestou.

‘Rebeldes'

Costa Neto tem promovido mudanças nos diretórios “rebeldes” do PL, que rejeitam suas diretrizes. Ao menos quatro foram trocados na última semana. Novo presidente do diretório do Pará, o senador Zequinha Marinho carrega a marca de um escândalo de rachadinhas. Ele responde na Justiça por ter cobrado, quando era deputado federal, uma “caixinha” para os cofres do PSC, seu antigo partido. Foi acusado pelo Ministério Público de concussão. Servidores comissionados do gabinete do parlamentar e da liderança do PSC eram obrigados a devolver 5% do salário mensalmente, sob pena de serem exonerados. Em 2011, quando o caso foi revelado, o senador disse que a prática era corriqueira e que não havia ilegalidades. Ele mesmo cuidava das demissões de quem se negava a devolver o salário ao partido. Os comunicados eram oficializados por e-mail. Até hoje, não houve desfecho na Justiça.

Chefe do PL no Rio Grande do Norte, o deputado João Maia é alvo de uma denúncia de esquema de desvio de dinheiro de obras de rodovias federais por meio do Dnit. O deputado foi acusado, em 2018, de peculato, corrupção passiva, associação criminosa, crimes contra licitações e lavagem de dinheiro. A ex-esposa, o ex-sogro e um sobrinho também foram denunciados. O processo tramita na primeira instância da Justiça Federal de Natal. Quando João Maia foi eleito, em 2018, o caso chegou a ser enviado para tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), que ordenou o retorno à primeira instância. Hoje, o processo está suspenso, graças a habeas corpus concedidos em favor de alguns dos investigados. “No entender da defesa, a acusação é falsa, lastrada em delação igualmente falsa”, afirmou o advogado Leonardo Almeida.

O deputado Édio Lopes, presidente do partido em Roraima, responde a uma ação penal no STF por empregar funcionários fantasmas na época em que era deputado estadual, entre 2005 e 2006. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), ele empregou três pessoas que não davam expediente no gabinete e recebiam salários. O STF chegou a devolver o caso à Justiça em Boa Vista, porque os fatos apurados não guardavam relação com o mandato de deputado federal. Contudo, a PGR recorreu alegando que o processo estava em fase final e deveria ser finalizado na Suprema Corte. Desde fevereiro de 2021, os autos estão com o ministro revisor. “A denúncia foi proposta com base em indícios extremamente frágeis, que jamais comprovaram a alegada suspeita relacionada a funcionário fantasma. Ao final do processo foi demonstrado que as acusações são inconsistentes, situação que forçou o próprio Ministério Público a pedir a absolvição de parte relevante das imputações”, disse o advogado Bruno Rodrigues.

‘Zeradinho’

Presidente do partido no Paraná, o deputado Fernando Giacobo já respondeu, anos atrás, por formação de quadrilha em suposto esquema de sonegação de impostos e também por sequestro e cárcere privado. Ambos os processos, abertos em 2000 e 2002, foram extintos por prescrição, sem que o mérito fosse julgado. Segundo o Ministério Público Federal, uma concessionária de Giacobo era beneficiada por um esquema de empresas fantasmas. No outro caso, a acusação apontava que ele sequestrou e manteve sob cárcere um homem que lhe levou papéis da venda de uma fazenda. O crime teria sido cometido para exigir a restituição de uma quantia paga antecipadamente depois de desconfiar que os documentos eram falsos.

O parlamentar criticou a menção às ações em que ele foi réu e hoje estão arquivadas. "Eu já respondi. O que eu tinha foi extinto ou por prescrição ou por julgamento. Não respondo a ação, a processo administrativo, a inquérito administrativo, a nada. Quem não respondeu a alguma ação no passado? Você, um parente seu, pode ter respondido", disse. "Quando foi feita a Lei da Ficha Limpa, falei que se não julgassem tudo o que eu tinha pendente eu não seria candidato em 2010. Minha vida zerou e fui para a eleição ‘zeradinho da Silva’".

Em Sergipe, o partido é controlado pelo empresário Edivan Amorim. Ele responde a um inquérito, de 2014, que apura a suspeita de crimes na obtenção de empréstimo junto ao Banco do Nordeste, em 2012. O presidente da instituição acaba de ser indicado por Costa Neto. Uma outra operação de crédito fraudulenta levou Edivan a ser condenado pela Justiça do Paraná, em 2000, no caso do Banestado. Empresas sergipanas foram acusadas de dar prejuízo de cerca de R$ 30 milhões. O inquérito, em Sergipe, está trancado desde o fim do ano passado. Edivan e outros investigados conseguiram um habeas corpus que suspendeu as investigações. Eles alegaram que a apuração está em curso "há cerca de sete anos, sem que, até o presente momento, tenha sido concluída ou oferecida a denúncia". Ao Estadão, o dirigente sergipano afirmou que o inquérito " foi motivado por denúncia anônima, sem nenhuma comprovação de absolutamente nenhuma irregularidade". Sobre o caso do Banestado, alega que venceu recurso no Superior Tribunal de Justiça.

O Estadão enviou perguntas sobre os casos à direção nacional do PL e à Presidência da República, mas não recebeu respostas até a conclusão desta edição.

Para entender:

Filiação do presidente dá protagonismo ao partido

Centrão: Em novembro, o presidente Jair Bolsonaro selou sua volta ao Centrão ao se filiar ao Partido Liberal (PL). Foi a oitava troca de partido feita por Bolsonaro desde o início de sua carreira política.

Impacto: Quatro ministros de Jair Bolsonaro devem disputar a eleição pelo partido, entre eles Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, pré-candidato ao governo do Rio Grande do Norte. Filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, deixou o Patriota e se filiou ao PL.

Bancada: Até o momento da filiação do presidente Bolsonaro, em novembro, o PL tinha 43 deputados na Câmara, além de 4 senadores. A sigla esperava filiar mais 25 deputados até o final da janela partidária, em abril. Outros parlamentares, porém, devem deixar o partido.

No Estadão

Eduardo Bolsonaro emplaca padrinho de casamento em cargo na comunicação do governo


Luiz Henrique Trombetta Barbosa será chefe de gabinete na Secretaria de Comunicação Institucional da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secoi). Foto: Davi Nascimento/Divulgação

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho "Zero Três" do presidente Jair Bolsonaro (PL), conseguiu emplacar um padrinho de casamento em um cargo de confiança no Ministério das Comunicações, comandado pelo ministro Fábio Faria. Servidor de carreira do Ibama e até então coordenador-geral de Administração do órgão, Luiz Henrique Trombetta Barbosa passará a despachar como chefe de gabinete na Secretaria de Comunicação Institucional da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secoi).

O órgão vinculado à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) é responsável por gerenciar o relacionamento do governo com formadores de opinião nacionais e internacionais, bem como por divulgar programas e ações do governo. Desde o início do mandato de Bolsonaro, a área de comunicação é alvo dos filhos do presidente, que entraram em embates com a ala militar, inicialmente responsável pelo setor. Ainda no período de transição, Bolsonaro chegou a anunciar que poderia colocar o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho "Zero Dois", para comandar o setor, mas recuou diante da possibilidade de a nomeação poder ser enquadrada como nepotismo. Agora, Eduardo apadrinhou o próprio padrinho para assumir uma vaga na pasta.

Na foto abaixo, tirada no casamento de Eduardo Bolsonaro, Barbosa é o segundo da fileira superior, da esquerda para a direita, ao lado de Carlos e do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o "Zero Um". O padrinho de Eduardo é também considerado homem de confiança de Carlos.

A nomeação já foi oficializada no Diário Oficial da União (DOU) desta terça-feira, 25. "Vou trabalhar com o Mateus Colombo Mendes", disse Barbosa ao Estadão, em referência ao chefe da Secoi. Em seguida, afirmou não poder dar mais detalhes e desligou o telefone. Questionado sobre sua formação acadêmica e se tem alguma expertise para ocupar o cargo, bloqueou a reportagem no WhatsApp.

O padrinho de casamento de Eduardo Bolsonaro é técnico administrativo do Ibama desde 2013. Em 15 de setembro de 2021, foi alçado à Coordenação-Geral de Administração, cargo de confiança que tem salário bruto de R$ 11.728,81, de acordo com informações de novembro publicadas no Portal da Transparência. Agora, ele será alocado na área de comunicação do governo em cargo semelhante.

A chegada de um servidor ligado à família Bolsonaro à comunicação do governo ocorre no momento em que o comitê de campanha do presidente da República, que quer disputar a reeleição, estuda ajustes nas estratégias eleitorais. Sob a liderança de Carlos, a campanha digital do chefe do Executivo deu mais um passo ao lançar a Bolsonaro TV, um aplicativo que reúne postagens do presidente em diferentes redes sociais.

Apadrinhamento. Desde que entrara em um concurso no Ibama, em 2013, Luiz Henrique Trombetta Barbosa esteve restrito a atuações simples de um técnico administrativo, como organização de dados e tabelas e serviço de secretariado. Suas promoções internas para cargos comissionados, ou seja, funções de confiança que dependem de nomeações, só passaram a ocorrer a partir de 2019, na gestão do governo Bolsonaro.

Em abril de 2019, Barbosa assumiu a função de chefe da Divisão de Administração e Finanças do Ibama, nível conhecido como “DAS-2”. Em dezembro daquele ano, subiu mais um degrau e passou a ser o coordenador de Gerenciamento de Contratos do Ibama, já um DAS-3.

Em setembro do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, decidiu dar um novo posto ao servidor, e Barbosa passou a ser o coordenação-Geral de Administração do Ibama, um cargo DAS-4 e que, na prática, cuida de quase todas as áreas de compras do órgão federal. Acima deste cargo há apenas a diretoria da divisão e a presidência do Ibama.

Barbosa, porém, só passou quatro meses nesta função. Dentro do Ibama, a avaliação de quem trabalhou com ele é de que o servidor não tinha preparo para assumir o posto e que sua ascensão deve-se às indicações políticas da família Bolsonaro.

Mateus Colombo Mendes foi procurado pela reportagem por e-mail e telefone para comentar a nomeação de seu novo subordinado, mas não retornou aos contatos. A assessoria de imprensa de Eduardo Bolsonaro disse estar em recesso e não ter conhecimento da informação.

No Estadão

Família Bolsonaro cobra para Olavo consternação que negou a 624 mil mortos



É bonito o surto de empatia que a morte de Olavo de Carvalho ateou na família Bolsonaro. O presidente e seus filhos trataram o morto com admiração, respeito e compostura. Até luto oficial Bolsonaro decretou. Foi como se pai e filhos estivessem completamente fora de si. Agora, só falta democratizar o luto.

Estalando de empatia, Carlos e Eduardo Bolsonaro ficaram abespinhados com o tratamento que a morte de Olavo recebeu nas redes sociais.

Os irmãos enxergaram em algumas postagens uma abordagem à moda, digamos, Bolsonaro —com deboche, achincalhe, ódio e até perseguição.

Eduardo mencionou a intenção de exigir providências administrativas à Câmara, porque um perfil oficial da Casa curtiu tuíte que o Zero Três considerou ofensivo ao seu mentor ideológico.Descobriu-se, finalmente, que a família Bolsonaro não é isenta de empatia. Agora, só falta democratizar o luto. A pandemia já matou no Brasil mais de 624 mil pessoas. Além de não enxergar um corresponsável no espelho, o presidente não fez aos mortos e aos seus familiares a concessão de um espanto. Ao contrário.

Quando os mortos da Covid eram contados em mil, Bolsonaro falou em "gripezinha". Quando os cadáveres somavam 5 mil, queixou-se da "histeria". Quando lhe perguntaram sobre os 10 mil corpos, disse: "Não sou coveiro".

Na marca de 20 mil sepulturas, perguntou: "E daí?". Aos 30 mil mortos, declarou que "todo mundo morre um dia". No recorde de 40 mil, Bolsonaro fez um convite aos seus devotos: "Invadam hospitais e filmem leitos vazios".

Ainda hoje há no Ministério da Saúde um admirador de Olavo de Carvalho que anota em documento oficial que a cloroquina é eficaz no combate à Covid, a vacina não.

Ah, que país extraordinário seria o Brasil de Bolsonaro se o presidente e sua prole tratassem os brasileiros com o mesmo respeito que devotam ao cadáver amigo.

Mesmo com reajuste do piso, professores ainda receberiam menos que diarista



A lei que criou o piso salarial do magistério subiu no telhado. Vigora desde 2008. Amarra o salário dos professores do ensino básico à evolução do Fundeb, o fundo de financiamento do ensino. Neste ano de 2022, os professores deveriam receber reajuste de 33,2%. O contracheque mínimo passaria de R$ 2.886,24 para R$ 3.845,34. Mas Bolsonaro cogita barrar o aumento. Age com o apoio da Confederação Nacional dos Municípios, que alega falta de caixa nas prefeituras. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação se equipa para recorrer ao Judiciário.

Onze em cada dez políticos sustentam que a melhoria da qualidade do ensino no Brasil passa pela valorização do trabalho dos professores. A retórica não combina com os fatos. Nas casas elegantes de Brasília, uma boa diarista cobra algo como R$ 200 por jornada. Dando duro de segunda a sexta, ela amealha R$ 4 mil por mês —fora o dinheiro da condução e as refeições feitas no trabalho. Se ralar aos sábados, a diarista eleva a remuneração mensal para R$ 4.800 mil.

Quer dizer: mantido o piso atual, professores do ensino básico continuarão recebendo 66% a menos do que uma diarista. Mesmo se for concedido o reajuste, o contracheque de um professor será quase 25% inferior ao da diarista das casas chiques de Brasília. O que há de comum entre o trabalho da diarista e do professor é a dignidade com que os dois ofícios podem ser exercidos. Mas não parece razoável que uma atividade executada por pessoas de primeiras letras seja mais bem remunerada do que o trabalho de professores que ensinam seus filhos na escola.

Há muitos pretextos técnicos para sonegar o reajuste aos professores. Quando Estados e municípios não têm dinheiro para bancar o aumento, o fundo federal precisa complementar. Uma emenda constitucional aprovada no Congresso em julho de 2020 tornou o Fundeb permanente e elevou de 10% para 23% a fatia da União no fundo. Por isso Bolsonaro cogita enviar ao Congresso medida provisória para travar o reajuste do piso dos professores. O mesmo Bolsonaro acena com a perspectiva de reajustar os contracheques dos policiais federais. Falta nexo. Não é à toa que o Brasil se consolidou como o mais antigo país do futuro do mundo.

Por Josias de Souza

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Queiroga enfrenta cerco do Supremo, da classe médica e da própria língua



O ministro Marcelo Queiroga enfrenta algo muito parecido com um cerco. É fustigado pelo Judiciário, pela classe médica e por sua própria língua. A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal encaminhou à Procuradoria "notícia-crime" contra Queiroga e Bolsonaro para apurar, segundo as palavras do seu despacho, o "provável cometimento do crime de prevaricação" pela demora em incluir crianças no programa de vacinação contra Covid.

A Associação Médica Brasileira, AMB, divulgou nota desancando o ministro da Saúde. Acusa-o de desrespeitar normas de conduta e preceitos éticos que se esperariam de um ministro cardiologista. "Se o ministro da Saúde é um médico", diz o texto, os brasileiros esperam que "respeite o Código de Ética da Medicina." Para a entidade, Queiroga "age à margem das mais simples normas de conduta e preceitos éticos."

No afã de prestar serviços ao chefe negacionista, Queiroga acaba perdendo o controle da própria língua. Em entrevista à TV Brasil, foi questionado sobre a nota técnica em que o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o olavista Hélio Angotti, anotou que a hidroxicloroquina é eficaz no tratamento da Covid e a vacina não. Queiroga repetiu que "ainda não está comprovada" a eficácia de medicamentos do chamado kit Covid. Mas considerou descabida "a confusão que querem criar entre vacina e cloroquina."

Queiroga inverteu a lógica. Não é que a eficácia da cloroquina contra a Covid ainda não está comprovada. A questão é que a ciência já comprovou a absoluta ineficácia do uso desse medicamento contra o vírus. É surreal que, com dois anos de pandemia, um ministro cardiologista ainda esteja escolhendo o lado da Terra plana do qual irá saltar.

Num ponto, Queiroga tem razão: é totalmente descabido valorizar a cloroquina e desqualificar vacina. O ministro renderia homenagens a lógica se demitisse o secretário que promove a confusão, depois de revogar a nota divulgada pelo auxiliar na semana passada.

A exemplo de Bolsonaro, Queiroga pratica crimes sanitários em série no Ministério da Saúde. O problema é que o procurador-geral da República Augusto Aras não age nem quando é empurrado por despachos como o da ministra Rosa Weber. E o protesto tardio da classe médica já não surte efeito sobre um ex-médico que trocou o jaleco pelo uniforme bolsonarista.

Por Josias de Souza