quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Bolsonaro tem de responder por seus crimes nesta terra mesmo, não em outra


Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Bolsonaro, ainda hoje, ataca o distanciamento social e defende remédios ineficazes contra a Covid-19 Imagem: Foto:Michael Dantas/AFP

O presidente Jair Bolsonaro falou na segunda à noite a uma rede de podcasts voltada para o público evangélico. Estava um tanto abúlico -- num dado momento, parece que se viu tentado a cavoucar nossa piedade. E admitiu que, se derrotado, não só se retira da vida pública como abandona "a terra". Considerando que não será abduzido por um ET, é preciso tentar entender a fala. Reproduzo:

"Se essa [a vitória] for a vontade de Deus, eu continuo. Se não for, a gente passa aí a faixa, e vou me recolher, porque, com a minha idade, não tenho mais nada a fazer aqui na terra se acabar essa minha passagem pela política aqui em 31 de dezembro do corrente ano."

"Não tenho mais nada a fazer aqui na terra"???

Hein?

Como, é evidente, resta a sugestão de que o presidente pode estar falando em suicídio, ninguém mais, na imprensa, tocou no assunto, o que é um desserviço. Sendo quem é, sua vida diz respeito a mais gente, goste-se ou não disso.

Políticos, quando derrotados, podem desistir da vida pública. Desistir "da terra" é outra coisa. O que ele quer? Piedade? Compaixão? Que fanáticos ateiem fogo às próprias vestes?

Em ensaio manjado do livro "O Mito de Sísifo", Albert Camus afirma que o suicídio é o único problema filosófico verdadeiramente sério nestes termos:
"Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental de filosofia. O resto -- se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias -- vem depois. São apenas jogos. Primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo."

E não! O texto de Camus não era um convite ao suicídio porque ele próprio sobreviveu ao ensaio — ou, do contrário, seria só um falastrão.

Não parece que Bolsonaro seja versado em Camus ou em qualquer outra coisa dos reinos animal, vegetal ou mineral. Se não foi ameaça de suicídio — e torço, por pelo menos quatro motivos, para que não —, pode ter sido apenas um daqueles momentos em que suas palavras se perdem naquele grande vácuo da caixa craniana em busca de alguma sinapse, de alguma descarga elétrica, mesmo que tênue, que lhes deem sentido.

Jamais escreveria com ligeireza sobre suicídio. Como indivíduo, como brasileiro e, bem, para surpresa de alguns, como cristão. No primeiro caso porque penso no sofrimento de quem é levado ao ato extremo. E lembro do desconforto que senti, há algumas décadas, quando li o ensaio de Camus.

O ser brasileiro tem de ser evocado. As forças que pulsam na carta-testamento de Getúlio Vargas, na sua dimensão política, ainda se fazem sentir entre nós. No dia 2 de outubro, escoimados os glacês retóricos, ou o país dá um passo para afastar o caos ou mergulha numa viagem sem volta — uma espécie de suicídio coletivo, sob a égide de homicidas compulsivos.

Que tenha sido Getúlio a escrever aquela carta PATÉTICA (buscar, por favor, o sentido da palavra no Houaiss) ainda é um desafio à compreensão da nossa história. Ele comandou o período mais sanguinolento da República, mas soube desenhar como ninguém a face do monstrengo reacionário que o matou e de que tinha sido caudatário.

E há, sim, a resistência do cristão. Não me dedicarei aqui a defender a dimensão sagrada da vida — e, pois, inviolável — quando tantos "crentes" fazem a apologia das armas e da morte. Quem sabe em outro momento. Sempre me pergunto se as pessoas escolhem a crença ou se, de algum modo, são escolhidas por ela. Acho fascinante o tema da predestinação cá nas minhas encucações. Mas não lhes tomarei o tempo com isso. Nunca tive paciência para os pregadores de verdades religiosas. Mas sempre fiquei atento aos intérpretes e exegetas. Religiões são saberes.

VOLTO A BOLSONARO
Segue misterioso o sentido do "aqui na terra" da fala de Bolsonaro. Ainda mais que falava a uma audiência primordialmente evangélica. No terreno da pilhéria, até me ocorreu perguntar: "Estaria falando em fugir da terra Brasil?"

Bolsonaro tem de sobreviver mesmo à sua eventual derrota. E aqui vem o quarto motivo para não especular sobre seu suicídio. Ele deve prestar contas à Justiça. E entendo que não são poucas. Os crimes de responsabilidade — mais de 40 na minha contabilidade — desaparecem com o fim do seu mandato. Os crimes comuns que cometeu no exercício do mandato e em razão deste estiveram sob o manto protetor da Procuradoria Geral da República e também da Câmara, onde jamais se formariam os dois terços necessários para autorizar o Supremo a abrir uma ação penal. Aquele tal orçamento pode ser "secreto", mas secretas não são as suas motivações. Bolsonaro comprou o Congresso, por intermédio de Arthur Lira e Ciro Nogueira, para livrar a própria pele. Como se vê, ele realmente não é suicida, e isso custou R$ 16 bilhões só neste ano.

O homem tem de responder por seus crimes aqui nesta terra mesmo. Que Deus lhe dê saúde para enfrentar alguns anos de cadeia, enquanto o país tenta sair do atoleiro moral, ético e existencial em que ele o jogou ao semear golpismo, armas, morte, doença e destruição.

Aguente firme, valente!



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