quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O ‘pato manco’



O presidente Bolsonaro já não governa mais. Os vetos derrubados nos últimos dias o consolidam na posição de presidente mais derrotado pelo Congresso nos últimos 20 anos. Na questão dos preços da Petrobras para gasolina, óleo diesel e gás, Bolsonaro tenta há meses encontrar uma maneira de reduzir os aumentos constantes. E agora tem de enfrentar o general Silva e Luna, colocado por ele na presidência da estatal no lugar de Roberto Castello Branco justamente para estancar a alta dos preços.

O general interventor assumiu completamente a tese técnica da Petrobras e, apesar das reclamações de Bolsonaro, anunciou nos últimos dias mais aumentos, na mesma direção da diretoria anterior. A autonomia do Banco Central foi outra “derrota” do governo, embora tenha sido dele a proposta. O presidente Roberto Campos Neto, usando a liberdade que lhe deu a legislação, ficou mais à vontade para criticar a política econômica do governo. Como quando, recentemente, disse que se percebe “o aumento da incerteza do momento presente”, referindo-se à crise deflagrada pelo presidente nos atos de 7 de setembro.

O acordo feito pelo presidente Bolsonaro com o Centrão, se lhe trouxe a segurança de que os pedidos de impeachment continuarão na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira, também tirou-lhe o controle do Congresso, que passou integralmente para os partidos que formam a maioria. A base governista está disposta a superar a impopularidade crescente de Bolsonaro em ano eleitoral aprovando medidas que desarranjam o equilíbrio fiscal ou o jogo eleitoral. O valor e a abrangência do novo Bolsa Família deverão ser bem maiores do que o equilíbrio fiscal recomenda, mas os efeitos eleitorais serão grandes.

Não há ideologia predominante na derrubada de vetos, tanto quando os congressistas votam a seu favor, como no caso das federações partidárias que preservarão pequenos partidos diante da cláusula de barreiras, quanto no caso da Lei de Abuso de Autoridade, em que o Congresso recuperou medidas importantes que haviam sido cortadas pelo presidente, como “constranger presos a produzir provas contrárias a si mesmo” ou “negar acesso aos autos da investigação ou ao inquérito”.

Nos dois casos, houve ideologia por parte do presidente Bolsonaro, que vetou as federações “para derrotar os comunistas”, como explicou o deputado Eduardo Bolsonaro, e trechos da Lei de Abuso de Autoridade a pedido de policiais.

A indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para a vaga de Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é outro exemplo de como Bolsonaro está enfraquecido no Congresso. Apenas um senador, Davi Alcolumbre, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, trava a sabatina há meses, fazendo campanha aberta contra o nomeado.

A tentativa é fazer com que Bolsonaro retire a indicação de Mendonça para escolher outro nome, do agrado de seu grupo político, como o procurador-geral da República, Augusto Aras — cuja sabatina Alcolumbre foi rápido em marcar —, ou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, que, aliás, é evangélico. Ao afirmar, dias atrás, que nomearia outro evangélico se Mendonça fosse recusado, o presidente fortaleceu a esperança de que possa nomear Martins para a vaga, o que só reforçou a manobra de Alcolumbre.

Além das dificuldades normais da indicação, Martins tem uma que pode ser definitiva: teria de ser indicado e sabatinado até 7 de outubro, quando faz 65 anos, idade-limite para assumir o cargo. Alcolumbre, aliás, está sofrendo um desgaste pessoal grande por não ter nenhum motivo relevante para adiar a sabatina, apenas seu desejo pessoal.

A situação está tão confusa que um dos argumentos mais usados contra André Mendonça é que ele levará de volta ao plenário do Supremo a maioria de apoiadores da Operação Lava-Jato, pois teria boa relação com os procuradores de Curitiba. Bolsonaro, que é mais de falar que de trabalhar, tornou-se um “pato manco” em exercício, como se chama, em linguagem política, quem tem a expectativa cada vez menor de poder futuro.

Por Merval Pereira

Dono da Havan faz da CPI caso para o Procon



A plateia ficou autorizada a exigir o seu dinheiro de volta. Pagou o palco, a iluminação, o som e a TV Senado para transmitir. Forneceu a estrutura para os senadores se prepararem da melhor maneira: o apartamento funcional, o transporte, o psicólogo e todos aqueles assessores. Interrompeu outras atividades para dar atenção integral ao depoimento do dono da Havan. Investiu essa fortuna para receber aquele espetáculo circense? Estava certo que Luciano Hang faria as palhaçadas habituais na CPI da Covid. Mas o mínimo que se esperava dos senadores era uma boa frase, um insulto mais sofisticado, uma ironia refinada, uma bala de prata qualquer que compensasse o custo.

Na prática, Hang ganhou de presente um comercial hipertrofiado da Havan, com direito à exibição de um vídeo institucional da sua rede de lojas. Tudo financiado pelo déficit público, com reprodução gratuita na GloboNews e na CNN. Antes de chegar à CPI, Hang chamara Renan Calheiros de corrupto nas redes sociais. Mordendo a isca, o relator da CPI insinuou que o depoente é o bobo da corte. Chefe da milícia parlamentar que ofereceu serviço de guarda-costas a Hang, o primogênito Flávio Bolsonaro reagiu: "Cinismo".

No final, a CPI não conseguiu senão provar que Luciano é mesmo o Hang que todos imaginavam —um sujeito que se veste como papagaio, vive no ombro de Bolsonaro, acha que o isolamento social prejudica os negócios, anuncia em sites de notícias falsas, autoriza a Prevent Senior a enfiar cloroquina na goela da mãe com Covid, dando de ombros para a omissão da doença na certidão de óbito.

Alguns senadores farejaram a fiasco. Tentaram desconvocar Luciano Hang. Mas Renan Calheiros bateu o pé. O relator não é um adversário de pouca expressão. Trata-se de um peso pesado, ex-presidente do Senado. Embora seus colegas estejam desolados, Renan acha que impôs constrangimentos ao depoente. Demora a perceber que foi convertido em coadjuvante no picadeiro de Hang, um ego mais articulado. Se pudesse, a plateia recorreria ao Procon. O brasileiro adora um picadeiro. Mas não suporta fazer papel de palhaço.

Por Josias de Souza

O gás e a Petrobras. Ou: Não bastaria botijão; é preciso ter o que cozinhar



Dá para saber quando as coisas estão fugindo ao controle. Costuma-se ter, nesses casos, um excesso de diagnósticos, uma penca de soluções milagrosas e nenhum caminho. O problema mais gritante da hora é o gás de cozinha. O botijão teve um aumento de 31,7% em 12 meses até agosto. É mais do que o triplo da inflação e atinge diretamente os muito pobres.

Jair Bolsonaro pressiona, com suas reações de tio rabugento que mal sabe do que está falando e antevisões miraculosas. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, idem. Os deputados decidiram dar uma resposta para a questão. A Petrobras também. O botijão já passa de R$ 100 em alguns pontos do país; parte dos pobres recorre a fogões a lenha improvisados, e o "Mito" vê outubro de 2022 se aproximando.

A PETROBRAS
Comecemos pelo que parece mais exótico. E estou curioso para saber como reagirão os tais mercados nesta quinta. A Petrobras resolveu criar um programa, orçado em R$ 300 milhões, para ajudar famílias muito pobres a comprar gás. Um dos problemas é a escalada internacional do preço do propano, matéria-prima do gás de cozinha. Teve elevação de 15% em um mês e de 96% em 12 meses. Durante uma viagem a Boa Vista, ontem, Bolsonaro disse que o preço vai reduzir à metade. É puro delírio. Isso não vai acontecer nem que os Estados zerassem o ICMS. Voltemos à Petrobras.

Sim, R$ 300 milhões representam muito dinheiro, mas estupidamente longe de dar uma resposta sensível à questão. No fim de julho, o presidente disse que a Petrobras teria uma reserva de R$ 3 bilhões para a distribuição de algo parecido com um vale-gás. Ninguém sabia da existência desse dinheiro reservado — nem a empresa. O valor que se anuncia agora corresponde a um décimo do que o presidente anunciou. Também não está claro como se vai operar o programa.

Qual será a reação do mercado? Em princípio, não é papel de estatal financiar esse tipo de programa. De um lado, pode-se entender que a pressão do governo sobre a empresa foi menor do que se esperava, e o desembolso, pois, ficará muito abaixo do pretendido pelo presidente. Por outro, é claro que resta no ar um cheirinho de intervenção do governo. Sempre que surge essa desconfiança, as ações tendem a cair. Esta quinta dirá.

ICMS
Bolsonaro pressiona os Estados em favor da redução do ICMS. Lira entrou na parada, mas depois recuou. Esse imposto responde por menos de 14% do preço final do produto ao consumidor. Dada a estratosfera em que passou a flutuar, um imposto zerado, o que é impossível, devastaria os cofres dos Estado e teria um impacto pequeno para quem hoje caça gravetos e madeira para improvisar um fogão. A Petrobras fez um comunicado decoroso e socialmente engajado defendendo a sua iniciativa. O impacto final será pequeno.

CÂMARA
A Câmara dos Deputados resolveu agir também. Aprovou um PL em votação simbólica, que segue agora para o Senado, prevendo o subsídio na compra do gás de cozinha de no mínimo 50% do preço médio do botijão no país.

O público-alvo seriam as famílias inscritas no Cadastro Único para acesso ao Bolsa Família, cuja renda per capita seja igual ou inferior a um salário mínimo ou que conte com um familiar inscrito no BPC (Benefício de Prestação Continuada) — aquele que Paulo Guedes queria exterminar quando chegou ao poder cheio de, bem..., parecerá trocadilho: cheio de gás. Hoje, comporta-se mais como um animador de auditório. Se aprovado o texto no Senado, o governo terá 60 dias para criar as regras. E os créditos serão depositados na forma de um cartão.

De onde sairá o dinheiro? No texto, os recursos virão da Cide-combustíveis: a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico que incide sobre a importação e a comercialização de petróleo e derivados.

Por falar em Cide, o Planalto estuda também repassar o total da arrecadação desse tributo para subsidiar, não se sabe como, o preço dos combustíveis. Em 2020, descontados os 29% transferidos obrigatoriamente para os Estados, a arrecadação da União foi de R$ 1,1 bilhão. Bem, é quase nada. E certamente não dará conta do projeto que seguiu para o Senado.

Sinal dos tempos: o texto aprovado na Câmara teve o voto contrário do Novo e de partidos da base aliada do governo. Será que o Planalto realmente tem um plano?

TODOS, MENOS O GOVERNO
Observem: temos o Congresso e a Petrobras tentando interferir no preço do gás de cozinha -- ou melhor: buscando fontes para subsidiar o produto para os mais pobres. É evidente que isso deveria fazer parte da política econômica. Ocorre que há muito tempo essa gente já não enxerga mais nada. Um grande nevoeiro de problemas lhes turba a visão. Resta a Paulo Guedes atacar os pessimistas de sempre e falar coisas sem sentido.

Se o governo busca atender a necessidades que estão postas à mesa, fura o tal teto de gastos. Como a sua credibilidade é baixa, não consegue negociar a questão com os agentes econômicos, que lhe meteriam o carimbo de gastador irresponsável. O resultado não seria nada bom.

Então se vão buscando saídas heterodoxas para responder às urgências, como o calote nos precatórios — para financiar a expansão do Bolsa Família — e esse programa da Petrobras, como se fosse papel da empresa operar tal coisa. É claro que não é. O Congresso, por sua vez, fala num subsídio que é amplo, e a fonte de recurso parece ser muito pequena para a despesa que se cria.

UM FUNDO DE ESTABILIZAÇÃO
Num prazo mais longo, estuda-se criar um fundo de estabilização para minimizar os efeitos da elevação internacional do preço dos combustíveis. Tal fundo seria formado, por exemplo, pelos royalties do petróleo que a Petrobras paga à União. O problema é que a experiência internacional com modelos do gênero é muito pouco auspiciosa. E não tarda para que se tenha um rombo também no dito-cujo. Ademais, um subsídio dado raramente consegue ser tirado sem trauma.

Ninguém sabe o que fazer. Até agora, só se pensaram heterodoxias de baixo impacto. É claro que a pandemia também está na raiz da disparada do preço do gás, em razão da demanda mundial por propano na fase de retomada. Mas está longe de ser o único problema.

É SÓ O GÁS?
O gás ganhou um peso simbólico. Mas é só um item da tempestade inflacionária. A gasolina aumentou 38,67% em 2021; a energia, 20,4%; a alimentação, 17,06%. Nesse caso, esse é o índice médio. No detalhe, a coisa é assombrosa: o óleo de soja subiu 98,5%; a carne bovina, 46,51%; o café, 35,4%; o açúcar, 32,84%; o leite, 31,09%; o arroz, 28,16%; a cesta básica, 25,46%. A inflação oficial, pouco abaixo de já enormes 10%, inclui itens que não passam pela mesa dos pobres nem em sonho. A carestia dos pobres -- é hora de restaurar o vocábulo -- é muito mais grave.

Como se vê, não bastaria ter gás ainda que o governo conseguisse uma redução substancial do preço. Também é preciso ter o que cozinhar.

Paulo Guedes falou anteontem no Quinto Fórum Nacional do Comércio, organizado pelos lojistas. E garantiu: "O Brasil está bombando (...) Eu acho que a economia está voando. Ela está vindo com força".

Então tá.

Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Na CPI, Luciano Hang cita informações falsas sobre doação de vacinas, BNDES e atestado de óbito da mãe



Cabo eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e defensor do tratamento precoce contra a Covid-19, o empresário catarinense Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, depôs na CPI da Covid no Senado nesta quarta-feira (29).

Em uma sessão tumultuada, negou fazer parte do gabinete paralelo que assessorava o governo federal. Também defendeu o tratamento precoce da Covid-19 com remédios sem eficácia comprovada.

Outros depoentes na CPI da Covid que tiveram suas declarações checadas foram o deputado federal e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); o reverendo Amilton Gomes de Paula; a diretora técnica da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, o policial militar de Minas Gerais e representante da empresa Davati Medical Supply, Luiz Paulo Dominghetti; o empresário Carlos Wizard; o deputado federal Luis Miranda; o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS); o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Elcio Franco; o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga; a médica Nise Yamaguchi; o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas; a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro; e os ex-ministros da Saúde Eduardo Pazuello, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, além do ex-chanceler Ernesto Araújo.

A Lupa verificou algumas das declarações do empresário Luciano Hang. A reportagem contatou a assessoria de imprensa da Havan a respeito das checagens e irá atualizar essa reportagem assim que tiver respostas. Confira a seguir o trabalho de verificação.

"Jamais eu iria forçar o meu funcionário a votar em alguém"

FALSO

Em setembro de 2018, Luciano Hang gravou um vídeo para os funcionários de sua rede de lojas de departamentos no qual afirma que, caso um “candidato de esquerda” vencesse as eleições presidenciais daquele ano, os 15 mil colaboradores poderiam perder o emprego. Essa conduta foi considerada um ato de coação pelo MPT (Ministério Público do Trabalho).

Na ação movida pelo MPT, o juiz Carlos Alberto Pereira de Castro, da 7ª Vara do Trabalho de Florianópolis (SC), afirmou que o empresário catarinense adotou uma postura "amedrontadora de seus empregados" ao impor ideias sobre qual candidato eleger. Na época, Hang já era conhecido como cabo eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro.

Em outubro de 2018, a Justiça do Trabalho determinou que ele divulgasse um novo vídeo afirmando que os funcionários eram livres para votar no candidato que desejassem. No mês seguinte, novembro de 2018, o MPT de Santa Catarina pediu a cobrança de multas da empresa de Luciano Hang, mais uma vez alegando coação de funcionários. Em 2019, Hang foi condenado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por propaganda eleitoral irregular em favor de Bolsonaro.

No vídeo que foi exibido no canal interno da empresa, Hang falou sobre o resultado de uma pesquisa realizada dentro das lojas e que indicou que 30% dos funcionários votariam nulo ou branco. “Se você não for votar, se você anular seu voto, se você votar em branco, e depois do dia 7 [de outubro] no nosso país, lamentavelmente, ganha a esquerda e nós vamos virar uma Venezuela, até eu vou jogar a toalha”.

Na sequência, ele reforça que, “se isso acontecer”, ou seja, caso um candidato da esquerda fosse eleito, a Havan iria repensar o planejamento comercial.

“Talvez a Havan não vai mais abrir lojas. Aí, se não abrir mais lojas, ou se nós voltarmos para trás, você está preparado para sair da Havan? Você está preparado para ganhar a conta da Havan? Você que sonha em ser líder, gerente, crescer com a Havan, já imaginou que tudo isso pode acabar e a Havan pode fechar as portas e demitir os 15 mil colaboradores?”

"Fiquei sabendo através da CPI que tanto o atestado de óbito quanto o prontuário da minha mãe foi pego e lá no atestado de óbito não constava Covid"

FALSO

Reportagem do G1 São Paulo mostra que a equipe de Luciano Hang já sabia que a Covid-19 não constava no atestado de óbito de sua mãe ao menos desde 11 de abril, ou seja, antes da CPI da Covid descobrir indícios de fraude no atestado de óbito de Regina Hang, ou mesmo de a comissão entrar em funcionamento —a primeira sessão foi realizada no dia 29 do mesmo mês. O portal publicou a troca de mensagens na reportagem.

Em resposta a um questionamento da GloboNews a equipe de Hang respondeu em mensagem enviada pelo WhatsApp que "a causa do óbito foram complicações de suas múltiplas comorbidades e uma infecção bacteriana. Quando ela faleceu, já havia sido curada".

O Ministério da Saúde orienta que pacientes que morreram após serem admitidos com Covid-19 tenham as possíveis complicações anotadas como consequência da doença.

"Além disso, juntamente com outros empresários, fizemos campanha para que a iniciativa privada pudesse comprar para doar [vacinas] e ajudar o país a acelerar o processo de imunização"

FALSO

Em fevereiro deste ano, Hang e Carlos Wizard lideraram um grupo de empresários interessados em comprar vacinas para o setor privado. Contudo, a ideia inicial não era doar para a população em geral, como sugeriu Hang no depoimento. A proposta dos empresários era comprar doses para imunizar funcionários das organizações que as adquirissem e, também, para serem comercializadas por farmácias e laboratórios, não para doar ao SUS.

Depois da sanção da lei 14.125 em 10 de março deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro, que regulamentou a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas, o empresário catarinense e Wizard chegaram a se reunir com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para defender que o setor privado não fosse obrigado a doar vacinas para a rede pública.

A lei determinou que 100% das doses compradas pela iniciativa privada fossem direcionadas à rede pública até que os grupos prioritários no país estivessem imunizados. Depois disso, a cota da doação deveria ser de 50%.

O teor desse dispositivo legal foi criticado publicamente por Hang e a reunião com Paulo Guedes foi realizada 15 dias depois que a regra foi sancionada, em 25 de março. Depois do encontro, o ministro da Economia pediu alteração na lei e defendeu que empresários pudessem comprar doses para imunizar seus funcionários.

No mesmo dia, Hang e Wizard prometeram doar 10 milhões de doses para a rede pública. Apesar da promessa, até o momento não há qualquer registro público de que essa doação tenha sido feita ao SUS.

Em 7 de abril, depois de rápida tramitação, a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de alteração da lei sancionada em 10 de março. No novo texto sugerido, foi retirada a exigência de doação integral das vacinas compradas por empresas à rede pública. A proposta foi enviada para ser votada no Senado e ainda segue sem definição.

"Jamais pedi um empréstimo do BNDES"

FALSO

Entre os anos de 1993 e 2014 a Havan Loja de Departamentos recebeu 57 empréstimos do BNDES na modalidade indireta, ou seja, intermediado por outras instituições financeiras. De acordo com o BNDES, R$ 27 milhões foram emprestados em valores nominais, o equivalente a mais de R$ 70 milhões em valores corrigidos pelo IPCA.

Dos 57 empréstimos, 48 estão relacionados ao Finame (Financiamento de Máquinas e Equipamentos), um tipo de financiamento destinado exclusivamente à aquisição desses produtos. As outras nove operações de crédito estão na categoria BNDES automático.

"Aí as pessoas: 'Não, mas tem 50 e poucas notificações lá que você pegou dinheiro do BNDES'. Eu compro máquinas do Finame. Quem tem o financiamento é empresa nacional, que se financia do BNDES para vender uma máquina para nós"

FALSO

Embora a maioria dos 57 empréstimos tomados pela Havan com o BNDES tenham sido pela modalidade Finame, 9 deles foram pela modalidade BNDES Automático. Além disso, quem é financiado pelo banco de fomento nessas duas modalidades não é a empresa que vende os equipamentos, e sim a empresa que compra —nestes casos, a própria Havan.

Ao todo, 48 dos 57 empréstimos foram na modalidade Finame. Existem diferentes linhas de financiamento nesta modalidade, mas a liberação do crédito funciona da mesma maneira: a beneficiária (compradora) solicita o crédito a uma instituição financeira e apresenta uma nota fiscal do produto que quer comprar. O BNDES, então, repassa o valor ao banco que intermediará o processo. O banco, por sua vez, efetua o pagamento pelo equipamento diretamente ao fabricante do produto.

O comprador, então, se torna um devedor da instituição intermediária, que no caso da Havan, foram Badesc, Banco do Brasil, Safra, Itaú e Bradesco, dependendo do caso.

Por isso, é equivocado afirmar que o beneficiário não esteja “pegando financiamento”. Apesar do dinheiro ser imediatamente transferido para o produtor, é a compradora que deve arcar com os custos do financiamento. Ou seja, mesmo que a Havan não tenha recebido dinheiro diretamente, ela passou a dever aos bancos o valor pago pelos equipamentos. Em alguns casos, solicitou 72 meses para amortizar a dívida.

“Nesta modalidade, existem duas relações jurídicas distintas, uma entre o BNDES e o agente financeiro e outra entre o agente financeiro e a beneficiária final da colaboração”, explica o BNDES. Ou seja, não há vínculo direto entre a Havan e o BNDES, ainda que 100% dos recursos de custeio partam do banco.

Os outros nove financiamentos foram pela modalidade BNDES automático. Essa categoria também permite o financiamento para compra de máquinas, equipamentos, sistemas industriais, comercialização, produção, entre outros. Mas, diferentemente do Finame, 30% dos recursos podem ser destinados ao capital de giro das empresas. Ou seja, esta fatia não é transferida ao produtor, e sim à beneficiária, que deve usá-lo dentro dos termos do contrato.

O último financiamento contraído pela Havan foi em 2014, e não há empréstimos recentes. Todos eles já foram liquidados.

"Imperial College falava que ia morrer no ano passado no Brasil 1,5 milhão de pessoas"

FALSO

O Imperial College de Londres, universidade do Reino Unido, nunca disse que 1,5 milhão de pessoas morreriam no Brasil.

A instituição realizou dois estudos, no final de março, que simularam, com fórmulas matemáticas, possíveis desfechos da pandemia da Covid-19 a partir das ações tomadas, ou não, pelos governos.

Neles, diversos cenários diferentes foram avaliados, desde a ausência absoluta de qualquer ação de mitigação até medidas restritivas de isolamento social. A conclusão é que, a depender das ações tomadas pelo Estado brasileiro, esse número poderia estar entre 44,2 mil e 1,15 milhão.

A primeira publicação calculou diversos cenários possíveis (página 11) que poderiam acontecer em todo o mundo a partir de algumas variáveis: se nada fosse feito, se algumas medidas de mitigação fossem adotadas ou se diversas medidas como distanciamento social e testagem fossem aplicadas.

No pior dos casos, cerca de 40,6 milhões de pessoas poderiam morrer em todo o planeta. No melhor dos casos, o número cairia para 1,8 milhão de mortos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 4,7 milhões de pessoas morreram de Covid-19 até o dia 28 de setembro de 2021.

Outro estudo do Imperial College, cujos dados foram divulgados em março do ano passado e a publicação completa foi feita em julho de 2020, detalhou essas informações por país.

No caso brasileiro, foram estimadas 1,15 milhão de mortes caso o país não tomasse nenhuma medida de mitigação e supressão do vírus —o que não aconteceu.

Por outro lado, se diversas estratégias fossem usadas, como o isolamento social rigoroso, testagem em massa e rastreamento de contatos, o número de mortes poderia ser de 44,2 mil pessoas. Há outros 12 cenários testados. Até o dia 28 de setembro, 595 mil pessoas morreram no país de Covid-19, segundo o Ministério da Saúde.

"Eu posso vender arroz, feijão e tudo em todas as prefeituras. Que nós temos loja, nós temos o CNAE, de Cadastro Nacional de Atividades Econômicas, que eu posso vender alimentos"

VERDADEIRO, MAS...

Embora a Havan tenha em seu CNAE (Cadastro Nacional de Atividades Econômicas) a categoria hipermercado, que permite a venda de alimentos, entre outros itens, a rede é conhecida pelo comércio de eletrônicos, utensílios domésticos, brinquedos, roupas e artigos importados —e não pela venda de produtos alimentícios como arroz ou feijão.

No site oficial, a empresa se apresenta como loja de departamentos e a descrição dos itens à venda não inclui provisões comuns em cestas básicas. Na categoria alimentos do site, os únicos itens listados são chocolates e balas.

Em maio do ano passado, ainda no começo da pandemia, a rede passou a vender arroz, feijão, macarrão e óleo de soja, itens que, até então, não eram comuns nas prateleiras.

Essa postura foi adotada para driblar as regras de isolamento social impostas em alguns estados e municípios com o objetivo de diminuir a disseminação do novo coronavírus. Com isso, algumas lojas da rede passaram a oferecer itens considerados essenciais e, dessa forma, puderam permanecer abertas durante a quarentena.

A estratégia da rede varejista foi criticada na época. À Folha funcionários informaram que arroz e feijão passaram a aparecer nas prateleiras já durante a pandemia.

"Cinco anos atrás, eu tive que aparecer para desmentir uma onda de fake news em que diziam que a Havan era de políticos ou de filhos de políticos. (...) Na época diziam que a Havan era do filho do Lula, da filha da Dilma"

VERDADEIRO

Em 2016, afirmações falsas circularam na internet associando as lojas Havan aos familiares dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT).

À época, Hang não publicava com frequência nas redes sociais e falava com a imprensa somente durante a inauguração de lojas. Após ser associado a figuras políticas, incluindo o bispo Edir Macedo, o empresário decidiu se manifestar e, inclusive, fez um comercial de Natal com o nome “De quem é a Havan?”.

Uma das pessoas a compartilhar a desinformação foi a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP).

Em um vídeo gravado em 2015 –antes, portanto, de se tornar deputada– e compartilhado no WhatsApp, ela gravou imagens de uma das lojas da Havan e afirmou que a empresa pertenceria à filha de Dilma Rousseff, a procuradora Paula Rousseff.

“Eu fico impressionada como os filhos de presidentes no Brasil ficam milionários e se tornam grandes empreendedores”, afirmou Zambelli, em vídeo.

Ela também questionou o motivo de a loja se chamar Havan, o que na sua opinião seria uma alusão à capital de Cuba, Havana, e, ao mesmo tempo, ter uma reprodução da Estátua da Liberdade, símbolo norte-americano. Em entrevista ao Congresso em Foco, a deputada confirmou que reproduziu uma notícia falsa.​

Na Folha

ANS revela-se veloz como cágado com Covid



A Agência Nacional de Saúde (ANS) movimentou-se no caso da Prevent Senior com a velocidade de um cágado perneta acometido de Covid. Entrou em campo com um ano e seis meses de atraso, empurrada por um dossiê preparado por uma dúzia de médicos e pelo alarido da CPI da Covid.

Em março de 2020, quando a pandemia engatinhava no Brasil, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo pediu intervenção nos hospitais da Prevent Senior. O Ministério Público paulista instaurou uma investigação criminal. O então ministro da Saúde Henrique Mandetta mostrou-se preocupado, pois a rede hospitalar da Prevent concentrava 58% das mortes por Covid em São Paulo.

Nessa época, receitar cloroquina ainda fazia parte da vida. E a Agência Nacional de Saúde não saiu do lugar. Hoje, quando a prescrição da cloroquina faz parte da morte, a Prevent é acusada de maquiar prontuários para sumir com cadáveres da Covid. ANS informa que farejou indícios de que a operadora receitou os remédios ineficazes do kit Covid sem comunicar aos pacientes.

A agência reguladora autuou a operadora de Saúde, concedendo prazo de 10 dias para a apresentação sua defesa. A ANS não está sozinha em sua lentidão. Os conselhos médicos continuam paralisados. O Ministério Público de São Paulo acaba de constituir uma força tarefa para varejar a Prevent. Os médicos que testemunharam o drama por dentro continuam escondidos atrás de um dossiê anônimo.

Por Josias de Souza

Que demência nos tomou? Fanatismo ideológico trouxe à luz os médicos do mal



Que demência tomou conta do país!

Finalmente a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) se move e autua a Prevent Senior. Cobrei aqui a atuação do órgão federal em artigo publicado no dia 25.

Em nota, informa a ANS:
"No curso das apurações relacionadas a denúncias contra a Prevent Senior, foram verificados elementos que contradizem a versão inicial apresentada pela operadora. Foram constatados indícios de infração para a conduta de 'deixar de comunicar aos beneficiários as informações estabelecidas em lei ou pela ANS', tipificada no art. 74 da Resolução Normativa nº 124 de 2006, e a ANS lavrou um auto de infração na tarde do dia 27. A operadora tem 10 dias contatos a partir dessa data para apresentar sua defesa".

A multa inicial é de R$ 25 mil, mas vai depender do número de casos. Se a explicação for considerada satisfatória, não há punição nenhuma. Vamos falar um pouco sobre a CPI. Depois, quero tratar de um gene muito perigoso: o do fanatismo. Ele trouxe à luz os doutores do mal.

O DEPOIMENTO
A CPI ouviu, nesta terça, um depoimento muito contundente da advogada Bruna Morato, que representa 12 médicos que elaboraram um dossiê sobre supostas irregularidades praticadas pela Prevent Senior, por intermédio da rede de hospitais Sancta Maggiore, que pertence ao grupo. O relato, que durou mais de seis horas, é escabroso.

Sim, é preciso cuidado. Afinal, a advogada presta depoimento tendo relativo domínio sobre a investigação, tantos foram os que a antecederam naquela cadeira. Também representa médicos que se desligaram da Prevent Senior e mantêm, com a operadora, uma relação de animosidade. Tudo isso deve ser levado em consideração e requer investigação rigorosa.

Uma coisa, no entanto, é inegável: a narrativa é verossímil, faz sentido e está afinada com a trágica sucessão de eventos que marca a adoção do malfadado "kit", composto de drogas comprovadamente inúteis no combate à covid-19.

Morato sustenta, segundo informações colhidas com os médicos que representa, que os termos de consentimento assinados pelos pacientes para que pudessem receber a terapia do "kit" não eram claros. As assinaturas seriam colhidas no momento em que os doentes recebiam os remédios, e se entende que não tinham clareza de que estavam se submetendo a um tratamento que a ciência dizia e diz ser ineficaz. Isso levou a CPI a requisitar, num prazo de 24 horas, a entrega à comissão de todas essas autorizações.

Que a Prevent Senior passou a oferecer aos pacientes o tal coquetel de remédios, isso é fato admitido pela própria operadora. Morato diz que os médicos do grupo eram constrangidos a adotar as drogas, o que a empresa nega, alegando que sempre respeitou a autonomia do profissional.

Convenham: aí está um dos pontos difíceis de engolir, não é? Se o "kit covid" passou a integrar a linha de atuação da Prevent Senior, aplicado em sua rede de hospitais — e o caráter supostamente milagreiro do troço chegava aos pacientes —, será mesmo que o "Doutor A" tinha autonomia para dispensá-los, uma vez que o "Doutor B" o oferecia a seus doentes? Ainda que assim fosse, temos: se A não prescrevesse o tratamento, B o prescreveria, certo?

Que a Prevent Senior caiu no buraco das "drogas de Bolsonaro", isso é inegável. Estamos diante de uma realidade factual. Fez o seu próprio "estudo observacional", ministrou os remédios, procedeu a uma espécie de parceria publicitária com o presidente da República e, no entanto, não dispunha de uma miserável evidência de que aquele troço funcionasse.

Morato afirmou ainda que os médicos evitavam denúncias ao Conselho Federal de Medicina e ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo porque suas respectivas cúpulas teriam vínculos com a Prevent Senior. Em nota, o CFM repudiou a afirmação e disse, mais uma vez, que sua posição é pelo respeito à autonomia do médico. É bom lembrar que o órgão jamais admitiu a ineficácia do "kit", embora, lembra-se por lá, tenha defendido a vacinação e o distanciamento social. Caramba! Que corajosos, né?

A advogada diz ainda que a Prevent Senior operava em parceria com o que ficou conhecido como "gabinete paralelo" da Saúde, integrado pelo virologista Paulo Zanotto, pela imunologista Nise Yamaguchi e pelo toxicologista Anthony Wong, que morreu de covid-19 numa das unidades do Santa Maggiore. Seu prontuário indica que passou por toda sorte de tratamento exótico, incluindo aplicação retal de ozônio. No atestado de óbito, não consta que tenha morrido de covid-19.

Segundo a advogada — e isto até dispensa apuração de tão óbvio —, o incentivo ao "Kit Covid" buscava dar esperanças às pessoas, encorajando-as a sair de casa porque se considerava que o distanciamento social traria prejuízos ao país. A prática também teria o endosso do Ministério da Economia.

Morato está fazendo apenas narrativa de chegada? Bem, será preciso investigar. Que a política pública de Saúde escolhida por Bolsonaro tenha retardado a compra de vacinas e acelerado a distribuição de remédios ineficazes, isso tudo é um fato. O presidente, ademais, estimulava a aglomeração, o fim do distanciamento social e a recusa ao uso até de máscaras porque, dizia, era preciso pensar também nos empregos. E, afinal, bastaria recorrer aos tais remédios...

PODER TÓXICO E GENE DO FANATISMO
A Prevent Senior e sua rede de hospitais, o Sancta Maggiore, cresceram bastante em tempos pré-pandemia. Escolheram um público que outros planos tendem a rejeitar por intermédio da mensalidade extorsiva. E, assim, se expandiram. Desconheço se operou antes parcerias com governos.

Uma coisa é certa: deixou-se atrair pela gravidade do planeta bolsonariano e, tudo indica, pagará um preço alto por isso.

Um amigo especula se não existiria por aí o que chama de "gene do fanatismo", de que seriam expressões os extremismos político, religioso e... futebolístico. Acho a tese interessante.

O que leva médicos — e não deve ser o prazer de impor sofrimento aos pacientes — a adotar uma terapia que a ciência provou ser ineficaz, alinhando-se, então, com o "Mito" Bolsonaro? Em suma: o que faz muitos doutores renunciar à ciência, quando não a pervertê-la, para endossar um demagogo extremista?

Não deixa de ser pavoroso que isso aconteça porque não esperamos do médico as larguezas intuitivas de uma cartomante, mas as certezas que a ciência oferece — ou, ao menos, especulações que transitem num orbital de razoabilidade quando inexiste o remédio adequado para uma doença.

É estupefaciente, eu sei, mas o extremismo político trouxe à luz os médicos do mal, capazes de torcer a ciência e o seu aprendizado em nome de uma causa. Em que momento o correto Dr. Jekyll decide ceder às feiuras morais de Mr. Hyde?

Foram treinados para salvar vidas, mas preferiram pô-las em risco em nome de convicções ideológicas. Constituem, certamente, a minoria. Mas é uma minoria numerosa o bastante para assombrar a razão.

Por Reinaldo Azevedo

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Federação partidária é jeitinho de país sem jeito



Vetada por Bolsonaro e ressuscitada pelo Congresso, a federação partidária é uma malandragem inventada pelos partidos que não conseguem 2% dos votos nacionais. Os congressistas legalizaram o desrespeito a uma regra que eles mesmos aprovaram em 2017 para bloquear o acesso de legendas sem voto aos cofres do Tesouro Nacional, aos horários de televisão e a dezenas de empregos públicos. Federando-se, os partidos poderão manter suas benesses, fazendo o eleitor de idiota.

Virou fumaça a chamada cláusula de barreira. Prevê o rebaixamento de partidos que não obtiverem na eleição de 2022 ao menos 2% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados. Na eleição de 2026, o índice da degola subiria para 2,5%. Em 2030, bateria em 3%.

Levantamento do Diap, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, constatou que 15 dos 33 partidos em funcionamento no Brasil não conseguiram obter 2% dos votos nas eleições de 2020 para as câmaras de vereadores. Os caciques da oligarquia partidária entraram em pânico. Se repetissem o fiasco em 2022, quando estarão em jogo as cadeiras na Câmara federal, perderiam verba, TV e cargos legendas como PCdoB, Rede, PV, PSOL, Pros, PTC e Novo.

Juntando-se numa federação de duas ou mais legendas, os nanicos continuarão avançando sobre o bolso dos brasileiros que lhes sonegaram o voto. Vai para o beleléu a intenção de enxugar o quadro partidário nacional. Noutros tempos, o Brasil era visto como país do jeito pra tudo. Virou um país que não tem jeito.

Por Josias de Souza

Dupla ilegalidade: com grana pública, Bolsonaro antecipa campanha e mira PT



O discurso de Jair Bolsonaro, na cerimônia dos "Mil Dias" — ou 1.001 — não se limitou às duas grandes indignidades de que já tratei: 1) pedir desculpas a seus golpistas porque, afinal, não tem o comando das Forças Armadas para coisas ilegais; 2) usar o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para praticar negacionismo. Ficou evidente que o presidente deu largada à campanha eleitoral.

Ele tentou disfarçar. Mas é sincero às vezes: por distração, não por cálculo ou alguma outra qualidade imanente. Lançou, na cerimônia, a cruzada contra o PT. Até aí, ok. Não são mesmo coisas que se misturem. Ocorre que o fez num discurso oficial, ao anunciar uma jornada de viagens e eventos que será financiada com dinheiro público.

A propaganda eleitoral antecipada começou nesta segunda e terá sequência nas viagens país afora que ele próprio anunciou. Apresentou-se, ainda, como o único candidato com chances de vencer os petistas. Nesse caso, tenta matar a tal terceira via ainda na semente. A íntegra do evento está aqui.

Num discurso confuso — em que o "lé" buscava outro "lé" e dava de cara, invariavelmente, com o "cré" — brandiu o fantasma da venezuelização do país caso o PT vença as eleições — o que, note-se, é uma rematada bobagem. Mais Bolsonaro tentou seguir no Brasil certos padrões de Hugo Chávez do que Lula ou Dilma, e não seria difícil demonstrar.

Afirmou:
"Não pensem [que] o que acontece com certos países no mundo não pode acontecer com o Brasil. Quem diria que, nos anos 90, que a nossa riquíssima, integrante da Opep, Venezuela, também riquíssima em minerais, chegasse à situação que chegou hoje em dia. Assim acontece com outros países (...)"

Vale a pena um comentário rápido. Bolsonaro nada sabe ou entende de Venezuela. Chávez era um tiranete, e o regime vigente naquele país é uma semiditadura. Mas cabe indagar: como é que o "líder bolivariano" chegou ao poder por meio de eleições? Corrupção, pobreza e desigualdade preparam o terreno. Sugerir que a Venezuela foi do céu ao inferno é uma tolice e uma mentira. Tenta, é claro!, sugerir que o PT buscaria modelo semelhante por aqui.

Curioso, não? Lula governou por oito anos. Dilma, por pouco mais de cinco. Nunca se ameaçou intervir no Supremo, tratorar o Congresso ou submeter tribunais à vontade do mandatário. Chávez, de fato, fez tudo isso em seu país. E, ora, ora, Bolsonaro tentou fazer o mesmo, a seu modo, no Brasil. E igualmente com o auxílio de milícias mobilizadas contra a democracia. O modelo que o "Mito" tinha na cabeça era uma espécie de bolivarianismo de extrema direita. Mas voltemos à sua fala.

"COMO ESTARÍAMOS?", ELE QUER SABER
E Bolsonaro prosseguiu:
"Se a facada fosse decisiva naquele momento, é só imaginar quem estaria no meu lugar: o perfil dessa pessoa; o seu alinhamento com outros países do mundo, em especial aqui da América do Sul, onde nós estaríamos agora? E o futuro do nosso Brasil passa por quem vocês, um dia colocar (sic), obviamente, para pilotar esse grande país."

Ao falar tolices sobre 2018, dá, vamos dizer, as "pegadas" da campanha do ano que vem. É claro que Bolsonaro está sugerindo que, tivesse ele morrido, o PT teria vencido a eleição. Quem conta a história que não houve? Bronco e despreparado como é, foi eleito, sim, com votos dados à pauta de extrema direita, mas o que determinou a sua vitória foi o forte sentimento antipetista de 2018.

Tivesse morrido naquele ataque, eleitores dispostos a votar contra o PT migrariam automaticamente para Fernando Haddad? Insisto: aquilo que não aconteceu fica para a imaginação e para a especulação. Mas a lógica indica que, sem o "Mito", outro candidato conservador disputaria o segundo turno com o petista. E talvez o vencesse com mais facilidade. Reitere-se: são divagações sobre o que jamais saberemos. Resta mesmo é a pergunta de Bolsonaro: "Onde nós estaríamos agora?"

Deixem-me indagar:
- com inflação de alimentos acima de 17%?;
- com produtos da cesta básica subindo 50% em 12 meses?;
- com mais de 14 milhões de desempregados?;
- com a gasolina nos cornos da Lula?;
- com 19 milhões de pessoas passando fome?;
- com o botijão de gás transformado em artigo de luxo?;
- com 600 mil mortos por covid-19?;
- tentando dar calote nos precatórios para furar teto, numa espetacular pedalada?;
- com um presidente tendo de se desculpar com suas milícias porque não conseguiu dar o golpe?;
- com um presidente pregando tratamento vigarista contra covid-19?

Ufa! Ainda bem que Bolsonaro nos livrou de todos esses sortilégios!

NÃO É O MELHOR. É DEUS
E Bolsonaro prosseguiu:
"Estamos acompanhando já os debates antecipados para 22. Eu sou melhor? Não! Aqui mesmo tem dezenas de pessoas melhores do que eu. Se for olhar para o Brasil, são milhares de pessoas melhores do que eu. Mas quis o destino que caísse o governo, né, a Presidência... ficasse comigo, sobrevivendo à facada, uma eleição completamente atípica, que não vai acontecer nos próximos 100 anos outra igual a essa, e nós devemos aproveitar a oportunidade que Deus nos deu."

Notem que ele se considera mesmo uma obra divina.

Há uma primeira verdade aí. Há milhares de pessoas melhores do que ele para governar o país. Há uma segunda verdade: a eleição foi mesmo atípica. Afinal, aquele que liderava as pesquisas e que poderia batê-lo nas urnas foi condenado por um juiz incompetente e suspeito, que aceitou ser seu ministro da Justiça sete meses depois de determinar a prisão do tal adversário... Não consigo pensar em nada mais atípico do que isso.

De fato, não vai se repetir. Nem em 100, 200 ou 300 anos.

Na sequência, Bolsonaro reconhece alguns problemas do seu governo — preço dos combustíveis, dos alimentos, dólar nas nuvens—, mas assegurou que não tem nada com isso.

O OUTRO CARA
Retomou o ataque ao PT:
"Imaginem se outro cara, que ficou em segundo, estivesse aqui. Já teria imposto o passaporte da vacina no Brasil ou não? Eu acho que não precisa responder para vocês. Porque os seus assemelhados em outros países fizeram isso daí. Não tem coisa mais importante do que a liberdade para todos nós.
O passaporte da vacina, que tem de ser implementado aos poucos, aguardando a vacinação plena, é uma questão civilizatória. Parece-me, sim, razoável que Bolsonaro se oponha a ele em nome do que a extrema direita chama "liberdade" mundo afora.

Liberdade de quê? De contaminar terceiros? De contribuir para a circulação do vírus? De pôr a vida alheia em risco?

Não é liberdade. É crime.

E AGORA O FANTASMA
Bolsonaro se apresenta como o único nome capaz de vencer o PT. Leiam:
"Agora tem um desgaste para o futuro. Vai disputar a reeleição ou não? Eu não vou entrar nessa guerra ainda. Agora, eu fora de combate, quem sobra para [enfrentar] o outro lado? Tem alguém do perfil semelhante ao meu? Alguns podem perguntar (sic): 'Graças a Deus não tem'. Eu não tenho que debater contigo (sic). Você já sabe qual o filme do futuro porque você viveu 14 anos passados esse filme. E podem ter a certeza: não serão apenas mais 14 anos. Serão no mínimo 50. É isso o que nós queremos para a nossa pátria?".
Pela ordem:
- já entrou na guerra;
- está em campanha faz tempo e deu uma espécie de largada oficial -- e ilegal -- nesta segunda;
- ninguém tem mesmo perfil semelhante ao seu porque isso Deus faz uma vez e joga, assustado, a receita fora.

Vejam ali: Bolsonaro diz que o PT pretende ficar 50 anos no poder. Bem, todo partido sempre quer vencer. Se estiver no poder, nele quer continuar. Angela Merkel faz um governo eficiente há 16 anos. Mas deixo isso para outra hora. Vamos aos fatos.

1: Lula teria condições, se quisesse, de emplacar a emenda para a segunda reeleição. Não o fez;
2: Dilma foi impichada, e os petistas deixaram o governo sem qualquer ameaça à ordem;
3: Lula foi condenado e preso. Nem tentou fugir nem propôs enfrentamento;
4: dos 17 processos de que o ex-presidente se tornou alvo, resta apenas um ativo. Venceu a maioria na Justiça Federal, não no Supremo;
5: o líder petista constituiu advogados, não propôs luta armada.

O PT ficou pouco mais de 13 anos no poder e o deixou quando o Parlamento assim decidiu. Em paz.

O primeiro ato das milícias bolsonaristas, estimulado pelo Planalto, pregando fechamento do Congresso aconteceu em 26 de maio de 2019. E o ogro não parou mais. Até a carta de rendição.

Bastaram dois anos no exercício do poder, e Bolsonaro pôs em dúvida a realização das eleições de 2022. E a possibilidade de um golpe, que sempre achei impossível, começou a ser discutida abertamente.

Bolsonaro, ele sim, tentou pôr fim à alternância de poder.

Bolsonaro, ele sim, tentou dar um golpe.

Bolsonaro, ele sim, tentou pôr fim à democracia.

ENCERRO
Aquilo a que se viu nesta segunda foi o primeiro ato de uma sequência que caracteriza, de maneira escancarada, campanha eleitoral antecipada.

Resta evidente nas palavras do presidente, acima transcritas. Não é uma interpretação. É um fato.

Por Reinaldo Azevedo

Bolsonaro omite 600 mil mortos, desculpa-se com golpistas e ataca vacinas



Escrevi na manhã desta segunda um texto sobre o que chamei "Os 1.001 e dias e noites" de horror do governo Bolsonaro. Afirmei que nem mesmo a sua espetacular ruindade poderia pôr em segundo plano a evidência de que as duas características principais da gestão são o golpismo e o negacionismo. E, por óbvio, essa gente terá de responder por isso.

O Palácio do Planalto preparou uma pajelança para marcar a data. E agora haverá uma agenda de viagens do presidente, que, obviamente, tem todas as tintas e características de campanha eleitoral antecipada, com dinheiro público. Que as instâncias adequadas sejam acionadas. Quero me fixar no evento em si. Bem, não havia acontecido ainda quando escrevi, mas já dava para adivinhar: golpismo e negacionismo estiveram no centro do discurso do presidente — e, como está demonstrado, também antecipou a campanha eleitoral de 2022. Dado que é uma solenidade oficial e com discurso público, o crime eleitoral é patente. Voltarei ao ponto em outro texto.

Falaram, antes de Bolsonaro, Pedro Guimarães, presidente da Caixa (à distância porque está com Covid-19); Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral); João Roma (Cidadania); Paulo Guedes (Economia) e Ciro Nogueira (Casa Civil). Há particularidades a destacar dessas falas, mas não neste artigo. O sotaque era, digamos, administrativista, a indicar quão operoso é o governo. O titular da Economia, claro!, resolveu fazer voos políticos. Com a habilidade costumeira. Mas me fixo em Bolsonaro.

O GOLPSIMO
Ah, sim, ele está mais contido. Tenta fingir um perfil institucional. Fala mais pausada, mais contida, convocando, desde já, o antipetismo a entrar em ação -- sabem como é... Há o receio de que surja, à direita, uma alternativa a seu nome. Mas é quem é. Dois momentos têm de ser destacados.

O presidente resolveu explicar a seus extremistas por que, afinal de contas, não deu o quase prometido golpe de estado -- segundo Guedes, isso não passa de um "script" da imprensa; o presidente seria um democrata exemplar. Bolsonaro referiu-se aos militares nos seguintes termos:
"As Forças Armadas estão aqui. Ela (sic) está a meu comando? Sim, é meu comando. Se eu der uma ordem absurda? Elas vão cumprir? Não! Nem a mim nem a governo nenhum! E as Forças Armadas têm de ser tratadas com respeito. Quando criaram a [Ministério da] Defesa, em 1999, não foi por uma necessidade militar. Foi por uma imposição política. Para tirar os militares desse prédio. Alguns criticam que eu botei militar demais [no governo], mais até do que nos governos de Castelo Branco a Figueiredo. Sim, é verdade! É meu círculo de amizades. Assim como de outros presidentes foram de outras pessoas. Era o círculo de amizades deles. Comparem hoje todos os nossos ministros, incluindo os civis, com os que nos antecederam. É simples".

RETOMO
Antes que vá ao essencial, considerações rápidas:
1: Comparar ministros? Devemos começar por Eduardo Pazuello ou Marcelo Queiroga?. Aliás, Bolsonaro deveria pedir essa comparação a Ciro Nogueira, segundo quem, em fala da campanha de 2018, Lula havia sido o maior presidente da história do Brasil:
2: os generais da ditadura tinham qual círculo de amizades para ter menos milicos no governo?;
3: Ministério da Defesa é cargo político, não militar. Logo, a Defesa não haveria mesmo de ser criada por "razões militares".

Mas vamos à questão essencial do trecho: Bolsonaro está dizendo a seus fanáticos por que não deu o golpe de Estado. Ele simplesmente não seria obedecido, como não foi quando ordenou, segundo o ex-ministro Raul Jungmann, que um caça desse um rasante na Praça dos Três Poderes para quebrar os vidros do prédio do Supremo.

Vejam a fala do presidente na íntegra no fim deste post. É uma espécie de grande lamento sobre suas impotências. Disse que nada pode sobre o preço dos combustíveis. Disse que nada pode sobre a inflação. E explicou, finalmente, que nada pode sobre... golpe de estado. Como fica evidente, se pudesse, daria. Mas... A sua fala compassiva, em tom aparentemente lamentoso, busca refazer pactos com os seus extremistas, como a lembrar: "Ainda sou eu que estou aqui; lembrem-se de quem eu sou. Mas não posso tudo".

O NEGACIONISMO
Bolsonaro segue o negacionista de sempre. O discurso saiu descosturado, sem nexo ou ideias principais e secundárias.

Depois de reclamar da demissão de um militante bolsonarista, dispensando de uma emissora de televisão por ter contado mentiras sobre o tratamento precoce, o presidente resolveu contar uma historinha que considerou edificante:
"Nos EUA, na iminência de retornamos para cá, chegou pra mim, em primeiro lugar, o nome do Queiroga, que estava ali infectado. E eu fui no quarto do Queiroga. Estava arrumadinho, cheiroso, bonitinho, feliz. [Falei]:
-- E daí, Queiroga, tudo bem contigo? Tomou a vacina?
-- Tomei.
Costumo brincar com ele, né?
-- Dormiu de máscara?
Ele sorriu. Todo mundo sabe que raramente ele tira a máscara. Falei:
-- Você está infectado. Infelizmente, não vai poder viajar conosco!
Não vou falar tudo o que conversei com ele. Mas me dirigi a ele e falei o seguinte:
-- Você vai seguir o protocolo do Mandetta: esperar sentir falta de ar para procurar um médico ou vai partir para um medicamento qualquer outro agora? Não vou responder a vocês o que ele me disse."

Bem, ele está sendo pusilânime sobre o que chama "protocolo de Mandetta". Era o que recomendavam a OMS e a comunidade cientifica então para evitar corrida desesperada aos hospitais. Mas isso remonta aos primeiros tempos da pandemia. A orientação mudou há muito tempo.

É uma fala asquerosa, nojenta! Ataca o uso de máscara e põe em dúvida a eficácia da vacina, embora ele vá dizer mais adiante que a intenção não era essa. Importa o que disse, não o que afirmou ter querido dizer.

Releiam. Se Queiroga tivesse, então, dado uma resposta que está de acordo com o saber firmado da ciência, por que Bolsonaro a omitira? Afirma, de modo indireto, que seu ministro da Saúde, um médico, está tomando uma ou mais drogas do "Kit Covid", comprovadamente ineficaz contra a doença.

Queiroga é fiel a seu senhor, mas não é louco. Duvido que esteja. Mas duvido também que vá desmentir o presidente. Qual é o "medicamento" contra a Covid, que não aqueles que servem para minorar sintomas da doença ou que atuem contra moléstias ou pré-existentes, que podem se tornar mais agudas, ou males oportunistas? Bolsonaro, obviamente, não está se referindo a essas drogas.

Aí emendou:
"Não tou contra a vacina. Se tivesse contra, Paulo Guedes, não teria assinado a Medida Provisória de dezembro do ano passado, destinando R$ 20 bilhões para comprar a vacina. Mas nós respeitamos a liberdade. Por mais que me acusam (sic) de atos antidemocráticos, são apenas acusações. Ninguém mais do que eu respeita o direito de todos. A vacina não pode ser obrigatória. Tereza Cristina tomou as vacinas e está em casa. O Bruno Bianco, a mesma coisa. O meu filho Eduardo Bolsonaro, a mesma coisa. Ainda há uma grande incógnita nisso daí. Prato feito para a imprensa dizer que eu sou negacionista. É a liberdade. Tem certas coisas que você tem ou não tem".

RETOMO
Assiste alguma razão a Bolsonaro: há certas coisas que você tem ou não tem. Cito exemplos: decência, vergonha na cara, honra... Não se tem pela metade.

Se ele tivesse decidido não comprar a vacina, já teria caído. A saúde é um direito constitucionalmente assegurado. Não comprou as vacinas por gosto, mas por imposição dos fatos. E o fez tardiamente, como a CPI comprovou, enquanto o Ministério da Saúde era colonizado por canalhas.

Obviamente, põe em dúvida a eficácia da vacina, o que é desmentido no Brasil e no mundo. O imunizante só é uma incógnita para negacionistas que fazem discursos filo-homicidas, como o que vai acima.

Ainda que a fala sobre a suposta liberdade de contribuir para a proliferação do vírus fizesse sentido, cumpriria indagar: o que isso tem a ver com a eficácia das vacinas?

ENCERRO
Escreverei depois sobre outros aspectos do discurso dos "Mil Dias". Mas ali está Bolsonaro. Não aprendeu nada. Não esqueceu nada. Em tom quase choroso, deixa claro a seus extremistas que as Forças Armadas não o obedeceriam se resolvesse virar a mesa. E continua fiel à agenda da extrema direita mundo afora: negacionista e antivacina. Um discurso que foi fragorosamente derrotado, por exemplo, nas eleições alemãs. E que será aqui também.

Nos "mil dias de governo", os grandes ausentes foram os 600 mil mortos.

Em vez disso, o presidente preferiu combater as formas comprovadas de combate à Covid-19, desculpando-se com seus brucutus por não ter podido virar a mesa.

 

Por Reinaldo Azevedo

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Incompetência não vai mitigar 1.001 noites e dias de crimes do bolsonarismo


Primeiro ato fascistoide estimulado por Bolsonaro contra o Congresso e o Supremo aconteceu no dia 26 de maio de 2019. Vejam ali no destaque um dos heróis dos golpistas de então... Sim, ele: Sergio Moro! Imagem: Fernanda Calgaro/G1

Neste domingo, 26 de setembro, que marcou os mil dias de governo Bolsonaro, o país ficou sabendo que Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal — banco estatal colonizado pelo bolsonarismo —, também está com covid-19. Da turma que foi a Nova York, há quatro doentes. Poderia ser apenas algo a lamentar. Muita gente se contamina mesmo tomando as devidas precauções. O vírus não admite distrações, e todos estamos sujeitos a elas. Mais: há situações que não escolhemos. Em suma: é raro que o próprio doente seja o responsável por sua doença. Mas há, sim, as responsabilidades moral e ética quando os infectados pertencem a um grupo militante que faz pouco caso da vacina e das medidas de prevenção. E, nesse caso, respondem por coisa muito mais grave do que contrair o vírus: contribuem para disseminá-lo de maneira determinada e consciente. Essa viagem de Bolsonaro e comitiva a Nova York é, então, a melhor síntese dos tais "Mil Dias de Governo".

É claro que o número é só um pretexto para um balanço. Ao governo, servirá para dar início à campanha eleitoral. Por que "Mil"? Imagina-se que, a partir do 1001º dia, uma nova jornada se inicia? Por que esta não poderia ter começado do 735º?

Já estão em curso os levantamentos por aí, não é? Reforma da Previdência; trajetória da dívida pública; a taxa de juros; o comportamento da inflação; geração de empregos; investimento privado nacional e estrangeiro... Tudo isso tem de ser revisitado. São dados importantes para avaliar a eficácia, ou não, de políticas públicas. A pandemia fez, sim, sombra a todos esses números. Vivemos dias inéditos, e o governo, igualmente, contou com instrumentos nunca dantes vistos para responder a esses desafios. E, então, é preciso ver se reagiu à altura das facilidades que lhe franquearam o Congresso e o Judiciário. A resposta, obviamente, é negativa.

Por mais que os levantamentos, digamos, administrativistas sejam importantes e devam ser feitos, não podemos correr o risco de normalizar essa gestão. O governo poderia ser absurdamente incompetente — e também é, como é sabido —, mas cabe indagar: por que é também golpista e negacionista?

AS MARCAS: O GOLPISMO
Há as marcas principais da gestão de Bolsonaro que não podem ser diluídas nem mesmo no mais negativo dos balanços que se possa fazer de sua gestão. Esse período tem de se transformar numa experiência a ser esconjurada, transformada em anátema. Temos de salgar e de esterilizar esse território, para que flores do mal jamais voltem a brotar. O governo não entrega bons resultados, mas essa ruindade não pode transformar o "Mito" apenas num gestor incompetente e trapalhão.

Já lembrei aqui e o faço de novo. Bolsonaro nunca precisou de conflito entre Poderes — na verdade, essa é uma ficção inventada pelo próprio Planalto — para estimular a pregação do golpe. A primeira manifestação de rua pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo data de 26 de maio de 2019. Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, era peça central na reforma da Previdência e se tinha se tornado já um dos principais alvos dos fascistoides.

A máquina de difamação que atingiu o Supremo, em associação ainda com o lavajatismo, levou Dias Toffoli a, corretamente, abrir o Inquérito 4.781, o das "fake news" — que segurou os golpistas pelo rabo e pelo chifre — no dia 14 de março daquele ano. Gostam de números inteiros? Não se contavam ainda nem 100 dias de governo.

Publiquei uma coluna na Folha no dia 29 de março de 2019 — antes de se completarem os 90 dias de mandato. Evidenciei que, por intermédio de quatro atos, Bolsonaro já havia cometido cinco crimes de responsabilidade — todos eles ligados à agressão às instituições. Era evidente que não iria parar. A íntegra do texto está aqui.

A propósito, escrevi então:
"Há um desânimo evidente em setores da elite que apostaram literalmente num milagre, que é o acontecimento sem causa. Por que diabos, afinal de contas, ele faria um bom governo ou encaminharia soluções institucionais? Em que momento de sua trajetória política ele se mostrou reverente à lei e à ordem? Nem quando era militar, ora bolas!"

AS MARCAS: O NEGACIONISMO
Se os outros Poderes não criavam nenhuma dificuldade especial para Bolsonaro -- e seu golpismo, pois, tinha raiz no delírio autoritário --, como explicar a sandice negacionista? O fenômeno, é verdade, não está restrito ao Brasil. Mas o presidente lhe conferiu a dimensão de política de Estado.

O Brasil é o único país do mundo que adotou o tal "Kit anti-Covid" como resposta oficial à doença, ao arrepio das evidências científicas. Se, nos primeiros dias da pandemia, era correto afirmar que, com certeza, não havia provas da eficácia das tais drogas, não tardou para que se pudesse afirmar que, com certeza, elas eram inócuas contra o vírus. Bolsonaro não recuou e dobrou a aposta.

Não se contentou com isso: também atacou e sabotou o distanciamento social, combateu o uso de máscaras e fez pregação antivacina. Coroou essa trajetória com o discurso abjeto na ONU. Entre os quatro contaminados de sua comitiva, está Marcelo Queiroga, o patético ministro da Saúde.

Como é quem é, Bolsonaro gravou um vídeo, em conversas com extremistas de direita da Alemanha, em que afirma que os que morreram de Covid-19 apenas tiveram a morte antecipada em alguns dias ou semanas: iriam morrer de qualquer jeito.

CONCLUO
Eu sei que parece estranho dizer as coisas deste modo, mas é necessário: não podemos correr o risco de permitir que a incompetência de Bolsonaro minimize seus crimes.

Por Reinaldo Azevedo