quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Patrimônio e grana viva dos Bolsonaros são veias abertas da era do desastre



Temos um grande paladino do combate à corrupção ocupando a Presidência que não consegue explicar o próprio patrimônio. Vamos ver como tudo começou.

Uma onda que misturou moralismo burro — e "moralismo" é só a derivação viciosa da moral; logo, é seu oposto — e destruição do devido processo legal nos jogou no buraco em que estamos, com a eleição de Jair Bolsonaro. Santo Deus! Sergio Moro, o símbolo da incensada (pela imprensa) Lava Jato, mandou prender Lula em abril de 2018 — e o petista liderava então as pesquisas de intenção de voto — e aceitou ser ministro da Justiça de Bolsonaro, presidente eleito, em novembro daquele ano, meros sete meses depois. Nota: nunca ninguém achou na sentença as provas contra o ex-presidente. E tudo foi considerado normal. Lula ficou 580 dias preso. Contra a Constituição. Demoraria até que o STF corrigisse absurdos que alguns ministros ali endossaram.

Sim, senhores! Foi também em nome da moral e da cruzada — ou dos "cruzados" — contra a corrupção que Bolsonaro foi eleito. A tese de Ciro Gomes de que isso aconteceu como reação aos governos do PT, com a devida vênia, é conversa de candidato. Havia outros postulantes à Presidência, não? Inclusive ele próprio. Ou Ciro já não se apresentava como aquele que era uma alternativa a tudo e a todos, muito especialmente ao PT? O candidato do PDT está errado. Bolsonaro se elegeu à esteira do ódio à política, que começou a ser cultivado no país em 2013 e que foi alimentado com rações diárias de mistificação e impostura pela Lava Jato. E aí só servia alguém que parecia idiota o bastante e inimputável o suficiente para não participar de "esquema nenhum". Impressão errada. Nem idiota nem inimputável. Era um espertalhão.

E o desastre se consumou. Não vou me ater aqui aos feitos formidáveis deste senhor, que só não foi ainda chutado pelas urnas porque, em conluio com o Centrão, fraudou a Constituição e as leis com duas PECs escancaradamente eleitoreiras. O STF acaba, no fim das contas, fazendo vista grossa porque sabe qual seria o custo de declará-las o que são: inconstitucionais. Ninguém deve abrir o flanco da guerra de todos contra todos em nome da lei e da ordem. É evidente que desordeiros sabem explorar esse flanco da prudência. Assim, impondo duas medidas ilegais sobre a soma de outros desastres, Bolsonaro é ainda competitivo. E, obviamente, não deve ser considerado carta fora do baralho.

QUEM SÃO OS MORALISTAS
Mas volto lá o início. Quem é o moralista que nos governa e que aponta o dedo contra adversários, acusando-os de corruptos? É o cara que lidera um clã que, dos anos 90 até agora, negociou nada menos de 107 imóveis, conforme evidencia reportagem do UOL, sendo que metade deles -- 51 para ser preciso -- foi comprada total ou parcialmente com dinheiro vivo. As transações em moeda sonante somam R$ 13 milhões -- ou R$ 25 milhões em valores atualizados.

Há no rolo casos que beiram o cômico. No ano passado, descobriu-se que Ana Cristina Valle, uma das ex-mulheres do presidente e mãe de Jair Renan, morava numa mansão avaliada em R$ 3 milhões. Ela afirmou que pagava aluguel, apesar dos indícios de que era a dona do imóvel. Se assim fosse, o valor de mercado para locação seria de R$ 15 mil mensais. Ela ganhava R$ 6 mil. A conta não fechava. Como é candidata a deputada distrital, teve de declarar os bens e bingo! O imóvel lhe pertence. Só que ela disse ao TSE que a casa vale apenas R$ 800 mil. Ela tem renda para ter um imóvel desse porte? Bem, a sabedoria convencional diz que não. A PF encaminhou à Justiça Federal um pedido para investigar se tão bem-sucedida senhora cometeu crime de lavagem de dinheiro.

O caso do senador Flávio e sua nababesca morada é eloquente. O presidente Bolsonaro também dá sorte aos que lhe são próximos: O imóvel mais caro da lista pertence a um cunhado seu: José Orestes Fonseca, marido de Maria Denise Bolsonaro. Ele comprou com dinheiro vivo — é claro! — uma casa em um terreno com quase 20 mil metros quadrados no interior de São Paulo, no valor de R$ 2,670 milhões.

A compra do imóvel em Cajati foi feita em "cash" e ocorreu em 2018. No passado, o terreno abrigava a casa de visitantes de uma importante empresa de minério de fosfato. José Orestes fez uma senhora reforma. No espaço, construiu quadras esportivas, área de lazer e um clube de tiro particular. Ele é um empresário na região do Vale do Ribeira e é bastante próximo do cunhado famoso.

Tanto amor de Bolsonaro e família por dinheiro vivo — vai ver os valentes gostam de banqueiros, mas não de bancos — faz supor, então, que, em suas declarações de bens, haja o registro de somas em espécie guardadas em casa, certo? Não há nada disso, como evidenciou o Estadão. Como a grana aparece, assim, do nada e serve às transações imobiliárias segue sendo um mistério... Conhece-se a prática da "rachadinha" no gabinete de Flávio quando deputado estadual, com ramificação que passou pelo gabinete do então deputado federal pai-de-todos, o Jair. Fabrício Queiroz admitiu a prática, mas disse que era para contratar gente pra trabalhar no gabinete. Opa! Queiroz é aquele que pagou uma conta de R$ 133,6 mil no hospital Albert Einstein em... dinheiro vivo.

NÃO É O PIOR
Inexiste uma explicação convencional para o fabuloso patrimônio da família -- já inexistia, diga-se, em 2018. O salário líquido de um parlamentar federal, por exemplo, é de pouco mais de R$ 22 mil. E Bolsonaro ficou nessa condição por 28 anos. Os ganhos de Flávio (então deputado estadual) e Carlos (vereador) eram ainda menores. Eduardo vai disputar agora o seu terceiro mandato. Antes, era escrivão da PF. Mas, como se vê, quem é realmente do núcleo familiar -- ainda que das famílias -- não fica ao relento. É essa qualidade de moralistas e patriotas que propõe o resgate moral da nação.

Haverá alguma investigação? Alguém supõe que o Ministério Público Federal se interessará pelo caso? Por enquanto, teria de ser a PGR. O órgão agoniza na servidão voluntária. E os flagrados nesses impressionantes sucessos imobiliários limitam-se a dizer que, bem, comprar imóveis com dinheiro vivo não é crime.

E, Santo Deus!, temos de convir: o mal maior que o bolsonarismo faz à República — sem prejuízo de que é preciso investigar os óbvios absurdos — não está nos folguedos imobiliários. A deterioração institucional a que submeteu o país nestes quatro anos é matéria bem mais perversa e perigosa.

VOLTANDO AO COMEÇO
A Folha publicou reportagem em 2018 sobre o já invulgar crescimento do patrimônio da família Bolsonaro -- ainda não tão vistoso, é verdade. Nada que incomodasse o Sacerdote da Moral e dos Bons Costumes Sergio Moro, que depois foi servi-lo como ministro da Justiça e Segurança Pública. Foi defenestrado quando o "Mito" percebeu que tinha as suas próprias prioridades e se organizava para torná-lo refém de sua tentativa de controlar, em proveito político próprio, o aparelho de investigação e repressão do Estado. Foi, então, espirrado da rodinha.

Candidato ao Senado (UB) pelo Paraná, Moro e seu Leporello, Deltan Dallagnol (Podemos), que ambiciona uma vaga na Câmara, estão se derretendo em salamaleques para Bolsonaro. Obviamente, nada veem de errado na expansão patrimonial formidável do clã porque, parece, seu amor pela Justiça e pela retidão é bastante seletivo e mira seus próprios interesses políticos, o que caracterizou desde sempre a Lava Jato.

Não só isso: às vésperas de mais um Sete de Setembro golpista promovido pelo presidente, eles houveram por bem atacar os manifestos em defesa da democracia.

Falei da imprensa lá no alto. Volto porque temos de ser rigorosos com a nossa própria grei. Durante um bom tempo, os dois heróis de parte considerável do jornalismo foram esses cavalheiros, que condescendem com golpistas e condenam a luta pela preservação da democracia.

Assim se explica como os magos dos imóveis, os Warren Buffett da Zona Oeste do Rio, se tornaram os chefes da extrema direta armada. E podem ainda condenar o Brasil à desgraça.

A questão do patrimônio dos Bolsonaros é muito mais grave do que parece e expõe as veias abertas de um tempo de desastres.

Por Reinaldo Azevedo

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