domingo, 4 de setembro de 2022

Bolsonaro chama Alexandre de Moraes de 'vagabundo' e ninguém se espanta



Espantosa época a atual. Bolsonaro chamou Alexandre de Moraes de "vagabundo" no sábado. E o mundo não veio abaixo neste domingo. Nenhuma nota de repúdio do Supremo. Ninguém chamou Michel Temer às pressas para redigir nova cartinha conciliatória. O próprio noticiário se recusa a fazer a concessão de um ponto de exclamação. Passou a ser normal. Todos já se deram conta de que o Brasil e a Praça dos Três Poderes vivem em dimensões diferentes. No país real, a inflação dos alimentos ainda roda acima dos 17% ao ano. No quadrilátero do Poder, Bolsonaro e Moraes dançam uma coreografia da empulhação na beirada do abismo institucional.

Na quarta-feira passada, Moraes recebeu na presidência do Tribunal Superior Eleitoral o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira. A pretexto de amansar a retórica de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas, Moraes deu asas à notícia sobre um projeto-piloto que adicionaria, por sugestão dos militares, uma nova fase no teste de integridade das urnas eletrônicas.

Um frêmito de alívio percorreu os bastidores do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, onde Moraes dá expediente a maior parte do tempo. Ao acenar com a hipótese de rendição da Justiça Eleitoral a uma exigência daquilo que Bolsonaro chama de "minhas Forças Armadas", Moraes esvaziaria a nova confusão que o capitão fabrica para o dia 7 de Setembro, a 25 dias da eleição.

Decorridas apenas 72 horas, Bolsonaro referiu-se a Moraes com o termo radioativo. Ao discursar na cidade gaúcha de Novo Hamburgo, o presidente chamou o magistrado de "vagabundo" por ter autorizado, com uma "canetada", operação da Polícia Federal contra empresários bolsonaristas que travaram diálogos vadios sobre golpe num grupo de WhatsApp.

Simultaneamente, milicianos digitais percorrem as redes sociais convocando devotos do "mito" para atos no Dia da Pátria. A convocação é feita por meio de mensagens e vídeos que encostam na celebração do Bicentenário da Independência uma agenda tóxica. Nela, misturam-se evocações para que as Forças Armadas assegurem "eleições limpas", alusões à "ruptura institucional", ataques ao Judiciário e pedidos de Pix para custear o sequestro da data nacional.

A pantomima da pacificação vem sendo adornada com declarações natimortas de ministros muito vivos. Numa entrevista de 28 de julho, por exemplo, o ministro Fábio Faria (Comunicação) previu que "uma solução pacífica" desarmaria antes de 7 de Setembro a crise que eletrifica as relações de Bolsonaro com o sistema eleitoral e o Judiciário. Nessa versão, o armistício nasceria de uma "discussão entre o presidente do TSE e o presidente da República".

Junto com o colega Ciro Nogueira (Casa Civil), Faria participou de articulação que levou Bolsonaro à posse de Moraes na presidência do TSE, em 16 de agosto. Desde que Bolsonaro entregou ao centrão a alma do governo e a chave dos cofres, as crises tornaram-se prejudiciais para o negócio. Sempre que o capitão dá uma de cachorro louco, soa o cântico dos que se dispõem a prestar ao Brasil o favor de amansar a fera. Ouve-se ao fundo o tilintar das moedas do orçamento secreto.

Na posse de Moraes, sem direito ao microfone, Bolsonaro ouviu calado e sem aplaudir um sabão do novo presidente do TSE em defesa das urnas e da democracia. Em privado, passou a se referir à cerimônia como uma "emboscada". Na semana passada, enxergou como "declaração de guerra" um lote de decisões dos ministros da Corte eleitoral.



A nova explosão de Bolsonaro ainda não veio. O "vagabundo" deste sábado é irmão gêmeo do "canalha" com que Moraes foi presenteado no 7 de Setembro do ano passado. A essa altura, ofensas pessoais soam como traques. O país vive a síndrome do que está por vir.

Enquanto os elefantes decidem na Praça dos Três Poderes de que trecho da borda do abismo vão saltar, o Brasil experimenta a vivência do abismo. No auge da pandemia, o brasileiro pobre socorreu-se da ajuda emergencial de R$ 600. Hoje, quem vai à feira com os R$ 600 do Auxílio Brasil eleitoreiro leva para casa o equivalente a pouco mais de R$ 400 em mantimentos.

Fora da Praça dos Três Poderes, o Brasil voltou a frequentar o mapa da fome. Nesse pedaço do país, pacificação é apenas um outro nome para comida. Debate sobre aperfeiçoamento de urnas que funcionam perfeitamente há 26 anos soa como conversa de malucos bem alimentados.

A perversão tornou-se tão natural no teatro da política que já estão roubando até o significado das palavras. Sob Bolsonaro, certos vocábulos entram e saem de cena numa velocidade que que atropela o significado. São tantas as situações em que o presidente precisa ser pacificado que a única serventia da palavra pacificação é a de sinalizar que a Presidência do Brasil se encontra em estado crônico de guerra.

Não bastassem as crises econômica, moral e institucional, o Brasil vive uma crise semântica. Há uma fome de significado no ar.

Por Josias de Souza

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