Cartaz do filme "Diamonds Are Forever" ? ou "Os Diamantes São Eternos" no Brasil. Convenham: nem precisamos de um 007 para entender o que aconteceu Imagem: Reprodução |
O governo de Jair Bolsonaro começou com o discurso da restauração moral e terminou com um sargento da Marinha, a serviço do então presidente, tentando intimidar um funcionário da Receita Federal para que este liberasse, de forma irregular, um conjunto de joias avaliado em R$ 16,5 milhões — no caso, colar, par de brincos e um relógio feminino, todos cravejados de diamantes, da marca Chopard, uma das mais caras do mundo. Prestem atenção! O esforço último de Bolsonaro para ficar com os mimos multimilionários presenteados pelo rei da Arábia Saudita — que, por lei, pertencem ao Estado brasileiro — foi feito na noite de 29 de dezembro. No dia seguinte, o dito "Mito" abandonou o mandato e fugiu para os EUA. Assistiu de lá aos ataques terroristas de 8 de janeiro perpetrados por seus seguidores.
É tudo muito impressionante, é certo. Mas me digam com sinceridade: vocês estão surpresos? As milícias bolsonarianas nas redes estão tentando inventar a tal "narrativa alternativa" aos fatos, uma expressão para designar o que se pode chamar, sem risco de erro, de mentira. A operação, como resta evidente, saiu atrapalhada. Mas tem lá o seu requinte: um outro lote de joias — estas masculinas — foi efetivamente entregue ao patrimônio público. Mesmo assim, permaneceu amoitado por 13 meses. Volto ao assunto em texto específico.
Recuperemos os fatos, conforme reportagens do Estadão:
1: No dia 26 de outubro de 2021, durante procedimento de rotina, agentes da Receita Federal decidiram inspecionar a bagagem de Marcos André Soeiro, então assessor de Bento Albuquerque, então ministro das Minas e Energia;
2: numa mochila, encontraram a escultura de um cavalo, em metal, com as patas quebradas; dentro dela, estavam as joias destinadas a Bolsonaro e à sua mulher, Michelle. A tal escultura também era um presente;
3: bens superiores a R$ 1 mil que não tenham sido declarados só podem ser resgatados, se apreendidos, com o pagamento de imposto correspondente a 50% do seu valor, mais multa de 25% — vale dizer: para ficar com os "presentes", Bolsonaro teria de desembolsar R$ 12,3 milhões;
4: revelado o escândalo, Bolsonaro e aliados dizem que as joias seriam incorporadas ao patrimônio público da Presidência. Ocorre que há procedimentos para que isso aconteça. E eles não foram adotados, como prova a Receita;
5: A Receita Federal explicou quais eram os procedimentos para que as peças fossem incorporadas ao acervo público, mas Bolsonaro não se mexeu — não nesse sentido ao menos;
6: Bolsonaro tentou por oito vezes pôr as mãos nas joias, mobilizando militares e três ministérios: Minas e Energia, Relações Exteriores e Economia, praticando absurdo continuado;
7: quando as joias foram apreendidas, o próprio Bento Albuquerque — um almirante da reserva — se mobilizou para tentar liberar o material. Não conseguiu. Em entrevista ao Estadão, que está gravada, afirmou que uma parte das joias (as apreendidas) era destinada a Michelle, e outra, para Bolsonaro;
8: foi dada a Albuquerque, informa a Receita, a alternativa de declarar que se tratava de presente de um governo para outro, mas ele não aceitou;
9: No dia 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do gabinete pessoal do presidente da República, Marcelo da Silva Vieira, envia um ofício para o chefe de gabinete do ministro de Minas e Energia, José Roberto Bueno Júnior, afirmando que o encaminhamento das joias seria feito e que a análise seria para a incorporação ao "acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República";
10: O Ministério das Relações Exteriores é acionado pelo presidente Bolsonaro e pede, no dia 03 de novembro de 2021, à Receita, para que tome "providências necessárias para liberação dos bens retidos". Como não se havia encaminhado o pedido formal de incorporação dos bens ao patrimônio público, a Receita responde que a liberação só se daria com o pagamento de imposto e multa;
11: no mesmo dia, o gabinete de Bento Albuquerque reforça a pressão sobre a Receita, cobrando a "liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão". Os dois ministérios afirmam que as joias seriam incorporadas ao acervo público, sem dizer qual. Insista-se: inexistia solicitação legal para tanto;
12: em 28 de dezembro, dois dias antes de Bolsonaro fugir do Brasil, o próprio secretário da Receita de então, Julio Cesar Viera Gomes, tenta liberar o material. Sem sucesso;
13: no mesmo dia 28, o próprio Bolsonaro encaminha um ofício a Vieira Gomes pedindo as joias;
14: no dia seguinte, 29 de dezembro, por ordem de Bolsonaro, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva vai a São Paulo mobiliza em um avião da FAB e, sob a coordenação do chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, o notório tenente-coronel Mauro Cid, tenta intimidar servidores da Receita a entregar as joias;
15: o servidor de carreira da Receita Marco Antônio Lopes Santanna não cedeu. Resistiu à pressão feita também por Viera Gomes, seu chefe;
16: as joias quase vão a leilão. A tempo foram resguardadas porque são agora elementos de prova de um crime.
Bolsonaro, como de hábito, resolveu posar de vítima. Disse que não pediu presente nenhum. Pois é. Permanece um mistério: por que um ditador presenteia um chefe de Estado com bens nesse valor? Ocorre-me aqui uma conta: o Biltre Homiziado na Flórida tinha reservado R$ 34 milhões para o Minha Casa Minha Vida. Só as joias femininas que tentou a todo custa tirar da Receita representam quase a metade desse valor. É o programa Minhas Joias Minha Vida.
Ao Estadão, Bento Albuquerque afirmou que uma parte das joias era, sim, destinada a Michelle, e a outra, a Bolsonaro. E admitiu que tentou liberar o material na Receita. Não pareceu se importar como o fato que ele e sua comitiva foram tratados como uma espécie de "mula" de uma variante do contrabando. Pior: se as joias são mesmo um presente do rei da Arábia Saudita, o que se tentava fazer era assaltar os cofres públicos.
Não há um só indício de que o então presidente pretendia entregar o presente multimilionário àquele que era seu dono: o Brasil. Ao contrário, todas as evidências apontam para o esforço de intimidar os servidores da Receita para que agissem ao arrepio da lei, o que não aconteceu. E assim foi até a noite anterior à fuga. Estupefaciente, mas não surpreendente.
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