terça-feira, 14 de março de 2023

Um marco civilizatório sob ameaça



O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, indicou que o presidente Lula da Silva deverá editar um decreto nos próximos dias alterando pontos essenciais do marco legal do saneamento, aprovado em 2020. Há motivos de sobra para apreensão. Não é trivial o risco de retrocessos em uma área fundamental para dar dignidade a milhões de brasileiros que, em pleno século 21, ainda não têm acesso à água tratada nem à coleta de esgoto – além, é claro, de gerar uma insegurança jurídica que em nada ajudará o Brasil a atrair investimentos privados.

Essa ameaça, a rigor, não era desconhecida. Desde a transição, tanto o modelo de concessão dos serviços de saneamento à iniciativa privada como o papel da Agência Nacional de Águas (ANA) na regulação do setor, muito bem definido no marco legal, têm sido duramente criticados por membros da atual administração e por parlamentares da base de apoio, sobretudo o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP), um dos grandes menestréis do atraso nessa seara, quase um lobista a serviço da insalubridade.

Em novembro, vale lembrar, Boulos afirmou que “a posição da maior parte dos partidos que sustentam a coligação presidida pelo presidente Lula, no próprio Congresso, quando foi votado o marco legal, é que é muito prejudicial o processo de privatização do saneamento”. Ademais, segundo ele, “é muito prejudicial você ter uma agência reguladora, como a ANA, com superpoderes e sem controle da sociedade” (ver o editorial A vanguarda do atraso no saneamento, 21/11/2022).

Ou seja, para alguns membros do atual governo e da base parlamentar de apoio, o que o marco legal do saneamento tem de mais avançado é visto como seus aspectos mais negativos.

Em frontal violação da Constituição, que veda a contratação de serviços públicos sem licitação, salvo raras exceções, os serviços de saneamento básico ainda são prestados no País quase que exclusivamente por estatais gigantescas e ineficientes. Ao longo de décadas, essas empresas têm sobrevivido, malgrado a prestação de serviços indizíveis, porque seus contratos com Estados e municípios são renovados automaticamente, sem fixação de metas e menos ainda de indicadores de qualidade.

Com todo esse tratamento privilegiado que recebem há muitos anos, as estatais de saneamento ainda são diretamente responsáveis por haver no Brasil, em 2023, cerca de 35 milhões de cidadãos sem acesso à água potável e pouco mais de 100 milhões na indigência de conviver com esgoto a céu aberto, sujeitos a toda sorte de doenças. O marco legal do saneamento, como um salto civilizatório, veio mudar essa realidade primitiva ao acabar com as renovações automáticas de contrato, obrigando as estatais a participar de licitações, e ao garantir condições para que a iniciativa privada invista em um setor custoso e até então pouco atrativo, liberando o Estado para atuar nas áreas em que, de fato, sua presença – sobretudo seus investimentos – seja necessária.

Rui Costa afirmou que o governo está “produzindo um decreto que, em quase a sua totalidade, será consensual entre o setor privado e o setor público”. Mas, ao contrário do que apregoa o ministro, o que se avizinha tem causado apreensão entre os especialistas no setor e, principalmente, em potenciais investidores. A julgar por tudo o que já foi dito por membros do governo sobre o marco legal do saneamento básico até aqui, de “consensual” o decreto não deve ter nada. Tudo indica que, mais uma vez, o lobby das estatais tende a prevalecer, mostrando quão forte é a resistência dessas empresas a quaisquer tentativas de mexer em seus privilégios.

É desalentador constatar que Lula se recusa a olhar para a frente e mobiliza seu governo para mexer em temas já encaminhados. O marco legal do saneamento foi um avanço. Há outros problemas que clamam a atenção do governo.

Mas não há sinais de que a atual administração esteja preocupada com os milhões de brasileiros que ainda vivem em condições subumanas. O governo, na verdade, parece mais preocupado com a proteção dos interesses corporativos dos servidores ligados às estatais de saneamento e com a manutenção da esfera de poder político sobre o controle dessas empresas.

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