sábado, 25 de março de 2023

‘Bilionários da tecnologia querem colonizar Marte e deixar a Humanidade para trás', diz pesquisador da Universidade de Nova York


Rushkoff: “Os estudos aos quais faço referência no livro mostram que bilionários perdem suas respostas empáticas. Se você mostra a foto de um bebê faminto, as partes do cérebro que deveriam se iluminar permanecem inativas. Eles realmente perdem a capacidade de empatia”

Na semana passada, o professor e escritor americano Douglas Rushkoff viajou de Nova York, onde mora, até Austin, no estado do Texas, para palestrar no SXSW, conhecido festival de inovação e cultura realizado na cidade todos os anos, desde 1987. A um auditório lotado, o autor disparou uma desconcertante e irônica crítica à mentalidade dos bilionários donos de empresas de tecnologia que, segundo ele, têm a ilusão de estar acima do restante da Humanidade, tratando as pessoas como objetos.

Rushkoff é professor de Teoria da Mídia e Economia Digital na Universidade de Nova York (CUNY/Queens), onde fundou o Laboratório de Humanismo Digital. É autor de mais de 20 livros, comentarista de tecnologia e mídia da CNN, pesquisador do Institute for the Future e requisitado palestrante em todo o mundo — virá ao Brasil no segundo semestre, a convite do programa Fronteiras do Pensamento.

Em seu último livro, “Survival of the richest: escape fantasies of the tech billionaires” (2022), sem tradução por aqui, Rushkoff vocifera contra os grandes investidores do Vale do Silício que, em sua opinião, “têm a ilusão de que podem subverter as leis da física, da economia e da moralidade e, no final, escapar da tragédia que eles mesmos estão criando”.

De sua obra recente, os maiores destaques são o manifesto intitulado Team Human (2019), que clama pelo resgate do protagonismo humano na era digital, e o livro “Throwing rocks at the Google bus: how growth became the enemy of prosperity” (2016), em que argumenta que falhamos em construir a economia distributiva que o mundo digital sinalizava ser capaz de promover. “Em vez disso, dobramos a aposta no velho conceito da era industrial, do faturamento acima de tudo”, comenta.

Aos 62 anos, Rushkoff começou a palestra em Austin contando a hilária história de quando foi contratado para falar sobre o futuro da tecnologia a um seleto grupo de multimilionários em um exclusivíssimo resort: “Havia perguntas sobre onde construir um bunker (Alasca ou Nova Zelândia?), mas a questão mais esdrúxula era como manter autoridade sobre o time privado de segurança depois do ‘Evento’. O ‘Evento’ é um eufemismo para o colapso ambiental e social, explosões nucleares, tempestades solares, pandemias e ataques cibernéticos fatais.” Em entrevista que começou presencialmente e terminou por e-mail, Rushkoff falou ao GLOBO sobre a necessidade de colocar o ser humano no centro das decisões tecnológicas.

O que os bilionários da tecnologia pensam em comum?

A principal perspectiva que compartilham é a crença de que podem se tornar “meta” e operar um nível acima do restante da Humanidade. Você sabe como os derivativos permitem aos investidores operar um nível acima do mercado de ações? Resposta: eles apostam no desempenho das ações, em vez de comprar as próprias. Isso é semelhante à maneira como esses homens pensam sobre o sucesso.

Poderia citar exemplos?

Peter Thiel (cofundador do PayPal, investidor, fortuna avaliada em U$ 4 bilhões) diz que as pessoas comuns competem no mesmo nível, mas o verdadeiro mestre deveria operar numa ordem de grandeza além da competição para ser o dono da plataforma na qual todos competem. Ou seja, você não abre uma loja virtual, você tem que criar uma plataforma em que todas as lojas virtuais competem, para agregá-las. Esta é, a propósito, a lógica da passagem da Web 1.0 para a Web 2.0. Agora Mark Zuckerberg (fundador da Meta, fortuna estimada em U$ 70 bilhões) quer ir da Web 2.0 para o que ele chama de Web3. Ele nem sabe direito o que é. Realidade virtual? Blockchain? Inteligência artificial? Mas, seja o que for, é uma ordem de grandeza maior. Já o futurista e inventor Ray Kurzweil (um dos fundadores da Singularity University) interpreta tudo isso literalmente. Ele pretende fazer o upload de sua mente em um servidor na nuvem, passando da realidade física para o universo dos símbolos digitais, na esperança de viver para sempre.

No livro, o senhor menciona um certo “mindset”. Pode explicar?

O mindset é a visão de mundo dos bilionários. Eles querem escapar, colonizar Marte, deixar a Humanidade para trás e sair do planeta. O mindset é regido por duas concepções: “cientismo” e capitalismo. A primeira diz que devemos matar e controlar tudo. A segunda é que devemos tirar valor de cada coisa viva, buscar ganhar dinheiro não criando valor, mas extraindo valor de quem o tem. Essa é a mentalidade dos tecnólogos ricos que enxergam outros seres humanos como inferiores a eles. Como animais a serem explorados.

Como isso começou?

Tudo leva a crer que o capitalismo se apropriou de um certo “cientismo”, que não é a Ciência com C maiúsculo, mas o uso da ciência como uma religião de controle. Começa com Francis Bacon (1561-1626), fundador do empirismo, que sugeria “pegar a natureza pelos cabelos, segurá-la e submetê-la à nossa vontade”. É uma fantasia de estupro e controle. A natureza é uma mulher que precisa ser subjugada. O humano é o homem, separado da natureza, seu dominador.

Como as pessoas comuns sucumbem ao “mindset”?

Pessoas comuns experimentaram aspectos do mindset durante a Covid. Muitas que podiam pagar simplesmente ficavam em casa e deixavam os trabalhadores trazerem coisas para eles. Alguns se mudaram para casas de veraneio e se desconectaram do restante da Humanidade. Foram atendidos pela Amazon e pelas plataformas de streaming, como se estivessem vivendo em um bunker apocalíptico. No geral, as pessoas também sucumbem ao mindset quando acham que estão nesta vida sozinhas. Quando acham que viver em comunidade é uma fraqueza, e não uma força. Quando procuram na tecnologia respostas para questões de natureza social. Quando pensam que a Humanidade é o problema e a tecnologia é a solução.

Você descreve o “mindset” como uma visão distorcida da Humanidade. Como assim?

Se alguém tende a enxergar as pessoas como animais, escravos, objetos a serem explorados, é difícil voltar a vê-las como seres sagrados dignos de respeito e cuidado. Quem vê as pessoas como “usuários” de sua tecnologia, valiosas apenas por seus dados e engajamento, não consegue vê-las como iguais. Quando alguém deliberadamente abusa e controla as pessoas, tende a se comportar como um sociopata, passa a desdenhá-las. Os estudos aos quais faço referência no livro mostram que os bilionários perdem suas respostas empáticas. Se você mostra a foto de um bebê faminto a um bilionário, as partes do cérebro que deveriam se iluminar — aquelas associadas à identificação ou empatia — permanecem inativas. Eles realmente perdem a capacidade de empatia.

Você argumenta que mesmo uma abordagem mais “humanitária” do uso da tecnologia não poderia parar “The mindset”. Por quê?

Se a ideia é usar tecnologia para controlar ou manipular as pessoas, então a dinâmica está toda errada. Você pode tentar controlar as pessoas de forma mais “humanitária”, da mesma forma que podemos criar galinhas de forma mais “humanitária” antes de abatê-las e comê-las. É melhor do que ser declaradamente mau, mas ainda é uma forma de controle. A única maneira verdadeiramente humana de implantar a tecnologia é inverter a dinâmica. Não ensine a tecnologia a usar as pessoas, ensine as pessoas a usar a tecnologia.

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