segunda-feira, 27 de março de 2023

As dissimuladas flores do mal


Passeata no Rio após 1964 contra a ditadura militar

Com os meus botões, me pergunto: será que eu compraria um carro usado do general Hamilton Mourão? Ou do ex-juiz Sergio Moro? Como vice-presidente, Mourão não deu um pio sequer sobre as investidas de Bolsonaro contra as vacinas e as urnas eletrônicas. Pelo contrário. Calou-se. Vai ver receava virar jacaré. Ou tatupeba. Sergio Moro, escorraçado do cargo de ministro, ensaiou ser oposição, mas logo voltou a ser ventríloquo bolsonarista. Nunca titubeou em ganhar um cargo e ficar de joelhos.

Ambos, agora no papel de senadores, ensaiam um discurso civilizatório, como se não tivessem sujado as mãos para alcançar seus postos. Confiam na falta de memória da política brasileira. Sobre as joias das arábias, nada; sobre o assassinato dos ianomâmis, quase um esgar de desconfiança. E o 8 de Janeiro? Só formalidades protocolares, qual um sujeito que limpa a boca na toalha da mesa. Escarnecem.

Foi assim logo depois da derrubada da ditadura. Acossados por uma inflação monstruosa e uma carestia desumana, com o país à beira da guerra civil (o general Figueiredo quase tomou uns tapas em Florianópolis), os militares saíram pela porta dos fundos. Ao menos tiveram a dignidade de simular uma retirada. Mas não os civis que colaboraram com o regime de tortura e de falta de liberdades. Apoiados pela máquina do governo em ocaso e por um eleitorado de ocasião — o gado de sempre —, conseguiram mandatos de senadores, deputados e até governadores. Como agora.

É o que se chamava domesticamente de entulho autoritário. Havia uma legislação draconiana, de cepa reacionária. Foi necessária uma Constituinte para passar o país a limpo, depois de décadas de autoritarismo. Só que o mal cria raízes, resulta nas dissimuladas flores do mal. Como brincava Brizola, o uso do cachimbo deixa a boca torta. Tantos anos de ditadura, sob uma visão medíocre de mundo — a Transamazônica, imagine só — forjaram a sociedade no modo atraso, em que a crendice se transforma em ciência, e qualquer justiça social soa desafio às leis divinas.

Mesmo depois de uma Constituinte, ainda sobraram rebotalhos capazes de contaminar a democracia brasileira — num exemplo, a desproporcionalidade, por estados, de deputados federais na Câmara. Há um evidente descompasso entre população e número de representantes. Mas nem a polícia vai mexer em semelhante vespeiro. Acabaria aí o poder de Arthur Lira.

Personagens como os senadores Hamilton Mourão ou Sergio Moro, embora mais letrados que um Marco Feliciano, só existem pelo rescaldo das atrocidades do bolsonarismo. Embalados em flores do mal, quando o passado traz o mau cheiro, reciclam o discurso à margem do capitão, sem jamais executar qualquer autocrítica. Perpetuam, assim, os preconceitos e a desumanidade comuns à extrema direita.

Como o medo. Aterrorizam em vez de esclarecer a população — a vacina tem um chip chinês! Desinformam — não à toa, quase metade dos brasileiros teme que o Brasil se torne um país comunista. Tal povo não precisa ser estudado, mas sim de estudo. Com o capitão reformado e seus epígonos, a educação voltou a ser coisa de esquerdista. Mais ignorância, mais dízimo. Mais Magno Malta.

O livro “Bilionários nazistas”, do jornalista David de Jong, é leitura esclarecedora no Brasil pós-8 de Janeiro. O autor conta como empresários financiaram a máquina de guerra hitlerista — e, claro, enriqueceram às turras. Não fizeram só por dinheiro, também por convicção ideológica. A mesma que levou o mercado a se calar diante dos ataques de Bolsonaro à democracia e à saúde do brasileiro.

Terminada a guerra, Hitler morto e seus generais e acólitos covardes em fuga, como Himmler, os empresários enriquecidos (depois de expropriar os bens dos judeus) procuraram se distanciar dos crimes de guerra. Sempre negando o que haviam dito, o que haviam feito, mentindo que não houvessem colaborado com o regime nazista. Não foram punidos nem devolveram o que haviam roubado porque os Aliados temiam o avanço do comunismo na Europa. Sempre a tal desculpa.

Ao final da ditadura militar brasileira, os colaboradores civis do regime se fizeram de democratas, sem nenhuma autocrítica, e foram perdoados em nome da conciliação. Também escaparam dos tribunais e das cadeias os torturadores.

O perdão foi um erro, anota a História. A tradição brasileira de contemporização não se transforma em benefício para a democracia, apenas salva os cúmplices. Até que venha outro crime. O Centrão e o bolsonarismo são filhos naturais de tamanho equívoco. Se não há purgação, continuam a brotar as dissimuladas flores do mal.

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