terça-feira, 31 de outubro de 2023

As milícias não estão sozinhas


Criminosos incendeiam ônibus após morte de miliciano em confronto com a polícia em 23 de outubro de 2023 — Foto: Reprodução

Mais um episódio de violência, mais uma reação indignada das autoridades: “É um absurdo!”, dizem, como se não tivessem nada a ver com o ocorrido. A pressão popular aumenta e logo aparece a resposta padrão: “Vamos tomar providências enérgicas!” Apostam que a promessa será esquecida por quem já cansou de ouvi-la. Se não der certo, começa a cantilena da intervenção federal: “As Forças Armadas vão ajudar no combate à violência, investiremos em inteligência e blá-blá-blá”.

Um comboio de blindados percorre a Avenida Brasil, um tanque é fotografado na frente da Rocinha. Se espalham blitzes pelas ruas da Zona Sul, uma “ação” da polícia na Maré ou no Alemão deixa uma pilha de mortos. No fim, se descobre que os blindados foram superfaturados, que a “inteligência” foi usada para ganhos pessoais e que a pilha de mortos não tinha nada a ver com o episódio original.

Se o leitor tem mais de 40, quantas vezes viu esse roteiro do parágrafo anterior?

Desta vez é a milícia que está tomando conta. Se espalhou pelo Rio uma lenda, a de que ela é melhor que o tráfico. Foi alimentada, claro, por políticos com interesses bem específicos. Segundo a fábula, não se trata de uma organização criminosa, uma máfia, mas de meia dúzia de inocentes sargentos aposentados que protegem a sua comunidade em troca de uma pequena taxa.

O inacreditável é que ainda tem muita gente que compra essa mentira. Assim como tem gente que supõe que os milhões e milhões do tráfico ficam todos com um pé-rapado que vive para cima e para baixo do morro de bermuda, chinelo e fuzil, ou então que a corrupção se resume ao guarda que pede uma cervejinha para aliviar uma multa ou a um delegado pachorrento que faz vista grossa para o jogo do bicho. Não se iludam, já ultrapassamos esse estágio há muitas décadas. A situação se tornou muito pior do que imaginamos.

A milícia é tão nefasta quanto o tráfico, ou até mais, porque está entranhada no poder. Para controlar não um bairro, mas uma região inteira de uma cidade é necessária a colaboração — vamos chamar assim — de políticos com cargos importantes. Quando um bandido com dezenas de condenações consegue sair do presídio pela porta da frente, com aval da Justiça, é preciso muita fé para acreditar que o único motivo é uma vírgula errada no processo. Quando desaparecem metralhadoras de um quartel do Exército, é necessária muita ingenuidade para crer que o roubo contou só com a esperteza dos ladrões. O tráfico comprou a indiferença das autoridades, a milícia virou a própria autoridade.

Existe uma solução? Sim, mas não é mágica: chama-se voto. Os políticos envolvidos com o crime organizado não vieram de outra galáxia, foram eleitos aqui. Se o candidato não encara a segurança pública com seriedade ou é daqueles fanfarrões patéticos que querem resolver dando tiro na cabecinha, escolha outro, para o seu bem. Se no tráfico a conexão entre os pés-rapados com um fuzil a tiracolo e o engravatado morador da orla ainda é disfarçada, com as milícias se perdeu qualquer prurido, a ligação é clara e até festejada. Tem políticos por aí que posam abraçados a criminosos com orgulho. Nem é preciso muita pesquisa para saber de quem estou falando.

Basta não votar neles. Milagre não tem, mas com um pouco de bom senso a gente resolve.

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