domingo, 13 de agosto de 2023

Bolsonaro, o lobo e o vício. Ou: Da hipocrisia e das coisas vis deste mundo



"Lupus pilum mutat, non mentem". É um adágio latino: "O lobo muda o pelo, não a índole". O ditado circula no Brasil. Quando minha mãe acha que algumas pessoas não têm conserto, manda ver na versão que circula entre nós: "Xiii, meu filho, pode esquecer: o lobo muda de pelo, mas não de vício!", introduzindo na sua sentença essa preposição que confere um certo caráter instrumental aos atos viciosos. A propósito: a substituição de "índole" por "vício" também se mostra apropriada. O "vitium" é uma imperfeição, o oposto da "virtude", entendida como coragem, destemor.

O par "vício-virtude" rendeu uma das melhores tiradas sobre a conformação moral dos indivíduos ao introduzir um terceiro elemento que é uma síntese negativa dos outros dois. La Rochefoucauld cravou para a posteridade frase indelével: "A hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude". É a tradução mais frequente. No original, o autor empregou "hommage" — homenagem" — e talvez a melhor expressão em português seja mesmo esta: o hipócrita vive a "homenagear" a virtude para que seus vícios ou permaneçam na sombra ou sejam confundidos com uma qualidade moral. O "hupokrit?s" — do grego antigo — era um adivinho, um intérprete de sonhos, mas também um velhaco: trapaceiro, ordinário, patife.

A origem provável de "velhaco" está no espanhol "bellaco". É o vilão, o cara mau. Num emprego mais antigo, um "borra-botas" — metaforicamente, "um verme".

Jair Bolsonaro, como se nota, deu-me a chance de passear pelas palavras neste sábado, ao cair da tarde. Há de servir para alguma coisa que não seja apenas lastimar nosso passado recente e o quanto seus desatinos custaram ao país e ao futuro dos brasileiros. Lembro-me aqui de uma das primeiras reportagens sobre a evolução patrimonial dos Bolsonaros, publicada pela Folha em 7 de janeiro de 2018. Tudo já se mostrava, então, inexplicável segundo, sei lá, critérios os mais objetivos, não é? As pessoas ganham "x", gastam "y" e podem acumular "z" fazendo o melhor uso do "resto", buscando multiplicar o saldo do par "adição-subtração". O mistério já se imiscuía na matemática que organizava a vida financeira e patrimonial do clã.

Depois veio à luz o caso das "rachadinhas" — admitido por Fabrício Queiroz, mas, disse ele, por bons propósitos e sem o conhecimento do agora senador Flávio Bolsonaro. Ocorre que a prática se estendia aos respectivos gabinetes da turma toda. E os mistérios sobre, se me permitem a graça, a "acumulação primitiva do capital imobiliário dos Bolsonaros" só fez crescer. É preciso ler "O Negócio do Jair - A História Proibida do Clã Bolsonaro, de Juliana Dal Piva".

ESTAVA TUDO ALI
Então se volta ao começo: "Lupus pilum mutat, non mentem". Bolsonaro pode até trair parte do seu eleitorado, que acredita na sua moral ilibada e toma a sua hipocrisia pelo valor de face, mas se pode sustentar, sem medo de errar, que a lambança com as joias não trai a sua história, não trai os seus vícios, não trai o seu "modus operandi", não trai o seu jeito de se colocar no mundo, não trai a razão por que se meteu na vida pública, não trai o entendimento que sempre teve da política, não trai a razão por que passou a disputar cargos eletivos, metendo toda a família nesse ramo de negócio.

É fundamental que vocês leiam — ou se lembrem de — este trecho de uma reportagem da Folha sobre a avaliação que fez o superior de Bolsonaro no Exército quando o então tenente tinha 28 anos:

Segundo a "ficha de informações" produzida em 1983 pela Diretoria de Cadastro e Avaliação do ministério, Bolsonaro, na época tenente com 28 anos de idade, "deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo de ouro'. "Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".

Em interrogatório a que foi submetido no conselho, Bolsonaro reconheceu ter feito garimpo "na cidade de Saúde, próximo de Jacobina [BA]", durante as férias, na companhia de três tenentes e dois sargentos paraquedistas, dois dos quais "estavam sob seu comando". Bolsonaro disse que não teve lucro e classificou a atividade como "hobby ou higiene mental".

Ouvido pelo conselho, o superior de Bolsonaro, coronel Carlos Alfredo Pellegrino, disse que tentou demovê-lo da ideia do garimpo, mas conheceu "pela primeira vez sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar".

Ao regressar, Bolsonaro procurou o oficial. Por um lado ele se "retratou", mas por outro teria "confirmado sua ambição de buscar por outros meios a oportunidade de realizar sua aspiração de ser um homem rico".

Em sua decisão final, o Conselho de Justificação concordou com a avaliação da ficha de informações. "A imaturidade é de um profissional que deveria estar dedicado ao seu aprimoramento militar, através do adestramento, leitura e estudos, e não aventurar-se em conseguir riquezas."

Segundo o coronel Pellegrino, Bolsonaro "tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".

Em síntese:
1 - Bolsonaro queria ficar rico a qualquer custo, mas se mostrava um tanto preguiçoso -- precisava de atividades que exigissem "esforço e dedicação";
2 - buscavar "outros meios" para se realizar financeiramente;
3 - precisava de "adestramento, leitura e estudos" -- o que, como se sabe, não aconteceu;
4 - tinha intenção de ser líder, mas:
- era excessivamente agressivo:
- argumentava sem lógica, racionalidade e equilíbrio.

E pensar que esse cara arrastou as Forças Armadas para a sua aventura tresloucada.

Quando se juntam sua saga patrimonial e sua biografia militar — meteu-se até em conjecturas sobre atentados terroristas —, chega-se sem surpresas ao escândalo das joias, que se operava em meio a articulações escancaradamente golpistas. Como é que aquele cara, olhado com um misto de preocupação e desprezo por seus superiores, chegou à Presidência? Bem, essa é outra saga, sobre a qual já escrevi muitas vezes aqui: sem a Lava Jato, que só existiu com a cortesia subserviente da imprensa, isso não teria acontecido. E os porta-vozes da operação ainda estão por aí, excretando regras. Adiante.

A IDEOLOGIA COMO UM OPORTUNISMO
Preguiçoso, folgazão e ambicioso, Bolsonaro sempre foi, notou seu superior. Que tenha escarrado indecências desde que se lançou na política, é inegável. Mas era um reacionarismo, vamos dizer, de ocasião, pautado mais pelo oportunismo e para falar à sua grei eleitoral -- militares da reserva eternamente insatisfeitos -- do que um discurso estruturado. Tanto é assim que saudou a primeira eleição de Hugo Chávez na Venezuela, que já tinha um inequívoco sotaque de esquerda. Ainda não havia nascido o suposto "ideólogo" da extrema-direita. Escrevo "suposto" porque, até hoje, é visível que ele não tem noção do alcance das coisas que diz. Não porque seja dotado de uma índole -- já se empregou hoje essa palavra -- melhor do que o produto do seu vomitório, mas porque lhe falta disciplina para conferir alguma organicidade aos disparates que diz. Até Olavo de Carvalho cobrava que lesse alguma coisa -- nem que fosse... Olavo de Carvalho. Mas eis aí: mesmo aqueles absurdos cobravam uma complexidade que o Biltre nunca teve. O único livro que leu, de que se tem notícia, é a autobiografia do torturador Brilhante Ustra.

Por mais indecências que pensasse, e pensava, foi também o oportunismo que levou Bolsonaro a se lançar como um guia da extrema-direita. Parece-me claro, a esta altura, que vislumbrou que tal condição iria satisfazer, como escreveu seu superior, "sua ambição de buscar por outros meios a oportunidade de realizar sua aspiração de ser um homem rico". As circunstâncias transformaram num ativo sua "falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".

O líder, o ideólogo de uma causa, o profeta — seja ele bom ou mau — supõe alguma forma de renúncia a prazeres mundanos, a confortos, ao "dolce far niente". Ainda que os antilulistas possam roer até os últimos ossos do seu próprio rancor, sim, é sobre ele que se vai falar agora. Não é segredo para ninguém que poderia, se quisesse, ter negociado com as circunstâncias. Àquela altura da vida, poucos teriam aceitado a prisão. Poderia ter deixado o país para organizar a "resistência" no exílio. Teria sido a sua destruição — e, sabe-se agora, se o tivesse feito, o país teria ficado à mercê de quadrilheiros e peculatários de dimensão internacional...

Lula entregou-se ao indeterminado. Quem enxergava, em 2018, o renascimento de 2022? Só um analista o fez com clareza e de modo solitário: o ex-primeiro-ministro português José Sócrates — leiam, a propósito, "Os Anos Bolsonaro - Crônicas de Tempos Sombrios" (Editora Contracorrente). A pessoa que realmente lidera encara o infortúnio se preciso; o covarde não tem coragem de passar a faixa ao adversário e sai pregando golpe também para tentar impedir que suas aventuras criminosas venham à luz.

O Bolsonaro das joias é aquele mesmo dos expedientes mesquinhos, mas que lhe garantiram e aos seus uma vida confortável, dos tempos de deputado. O "ideólogo" da direita foi só um cavalo que passou encilhado, mas resta evidente que ele jamais esteve disposto a uma vida de privações para fazer valer uma convicção: enquanto propagava a seus fiéis bugigangas ideológicas, seus escudeiros se encarregavam de negociar bens públicos que lhe renderam benefícios pessoais.

APÓSTOLO PAULO
Quem está surpreso? Em essência, convenham, ninguém. Nem mesmo seus admiradores, que nunca o tiveram na conta de alguém particularmente iluminado. É curioso como alguns de seus fanáticos elogiam justamente a sua incultura, às vezes a sua ignorância, como evidência de predestinação. Certa feita, o pastor Silas Malafaia recorreu ao apóstolo Paulo para explicar esse particularíssimo líder:
"Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas vis do mundo, as desprezadas e as que nada são, para reduzir a nada as que são e para que ninguém se vanglorie diante dele."

Assim, parte do segredo do "Bolsonaro líder" está em ser "louco", "insignificante", "desprezado", "vil"; está em "não ser nada". E, desta forma, Deus não seria desafiado. É a pior leitura possível de Paulo, mas é uma boa leitura, sem dúvida, de Bolsonaro.

ENCERRO
Aquele que anunciou o resgate moral do país está no centro de uma operação que investiga a formação de uma organização criminosa para a prática de peculato, lavagem de dinheiro e desvio. Apropriadamente, a PF a batizou de "Lucas 12:2", a saber: "Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido". Dialoga, como se sabe, com João 8:32: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará"

A propósito: o Bolsonaro citador da Bíblia também é parte de uma farsa. Já deu mostras de sobra de que nunca nem passou os olhos pelo "Livro". É só mais um jeito de ser uma das coisas vis... "Lupus pilum mutat, non mentem".

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