A nota emitida pelo Ministério da Defesa contra fala do ministro Roberto Barroso, do Supremo, que participou de um seminário por videoconferência neste domingo, é, ela sim, irresponsável, truculenta e ameaçadora. Até porque responde ao que o ministro não disse e ignora o que disse. Barroso não atacou as Forças Armadas. Ele elogiou o seu profissionalismo. Repete-se, assim, de forma emblemática, parte ao menos da fábula do lobo e do cordeiro. Vocês conhecem: querendo cravar os dentes naquele que saciava sua sede rio abaixo, o carnívoro acusa o herbívoro de estar turvando a água que bebia. Tese desmoralizada, testa mais algumas hipóteses falsas. Sem amparo nos fatos, mata o outro mesmo assim. Os nossos lobos estão fazendo acusações infundadas. Mas não ficarão com a carne desta vez. Vamos ver.
Barroso participou à distância do "Brazil Summit Europe 2022", evento realizado pela universidade alemã Hertie School, de Berlim. A nota da Defesa responde ao seguinte trecho da fala de Barroso:
"Ataques totalmente infundados e fraudulentos ao processo eleitoral. Desde 1996, não tem nenhum episódio de fraude eleitoral no Brasil. Eleições totalmente limpas, seguras e auditáveis. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar... Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo..."
O ministro fala mais sobre os militares. Já chego ao ponto. Mas esse é o trecho que motivou a nota. Observem que não há acusação nenhuma contra as Forças Armadas. O que ele aponta é uma tentativa de usá-las para ameaçar o processo eleitoral, coisa que o presidente já fez algumas vezes. Atenção! Na sequência, Barroso rasga elogios ao profissionalismo dos quarteis. Diria até que foi benevolente demais. Afinal, forças realmente profissionais não assinam ordem do dia exaltando golpe de Estado. Faz-se escarcéu com a expressão "estão sendo orientadas" como se o ministro estivesse acusando o comando. O conjunto deixa claro que isso é falso. Ele afirma rigorosamente o contrário, se verá. Leiam a reação do Ministério da Defesa:
Brasília (DF), 24/04/2022 - Acerca da fala do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, durante participação, por videoconferência, em um seminário sobre o Brasil, promovido por entidade acadêmica estrangeira, em que afirma que as Forças Armadas são orientadas a atacar e desacreditar o processo eleitoral, o Ministério da Defesa repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia.
Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições.
As Forças Armadas, republicanamente, atenderam ao convite do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e apresentaram propostas colaborativas, plausíveis e exequíveis, no âmbito da Comissão de Transparência das Eleições (CTE) e calcadas em acurado estudo técnico realizado por uma equipe de especialistas, para aprimorar a segurança e a transparência do sistema eleitoral, o que ora encontra-se em apreciação naquela Comissão. As eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos.
As Forças Armadas, como instituições do Estado Brasileiro, desde o seu nascedouro, têm uma história de séculos de dedicação a bem servir à Pátria e ao Povo brasileiro, quer na defesa do País, quer na contribuição para o desenvolvimento nacional e para o bem-estar dos brasileiros. Elas se fizeram, desde sempre, instituições respeitadas pela população.
Por fim, cabe destacar que as Forças Armadas contam com a ampla confiança da sociedade, rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população. Assim, o prestígio das Forças Armadas não é algo momentâneo ou recente, ele advém da indissolúvel relação de confiança com o Povo brasileiro, construída junto com a própria formação do Brasil.
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
Ministro de Estado da Defesa
Há 26 dias, o Ministério da Defesa, ainda sob o comando de Braga Netto, mandou a Constituição para o lixo e exaltou o golpe de Estado. Há um representante fardado na Comissão criada pelo TSE para acompanhar as urnas eletrônicas. Bolsonaro mentiu, afirmando que os militares apontaram fragilidades no sistema. Isso não aconteceu. Mas não houve uma resposta do Ministério restabelecendo a verdade. O próprio tribunal teve de se pronunciar. Eis aí uma das tentativas de orientar as Forças Armadas a atacar o processo eleitoral.
Observem que a nota fala sobre essa participação e lembra das "propostas colaborativas", mas perde uma vez mais a chance de deixar claro que não se encontrou evidência nenhuma de que o sistema é fraudável.
As Forças Armadas têm, sim "prestígio", mas não para governar, não é mesmo? Ele cresceu, diga-se, na democracia à medida que os militares se distanciaram da política porque não foram feitas para governar. Ou alguém acha o contrário na caserna?
O QUE REALMENTE IRRITOU
E claro que o Ministério da Defesa tem consciência de que Barroso elogiou as Forças Armadas, conforme se lerá mais abaixo. Mas houve um trecho em que a simples exposição dos fatos, sem acusação nenhuma, evidenciou a tentativa de desordem nos quarteis promovida por quem tomou as decisões: o presidente da República. E a isso a nota da Defesa não respondeu porque irrespondível. Disse Barroso, com correção:
"Até agora, o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido. Mas não deve passar despercebido que militares profissionais, admirados e respeitadores da Constituição, foram afastados: o general Santos Cruz, um herói brasileiro que combateu no Congo; o general Maynard Santa Rosa, um homem da maior integridade, eu mesmo convivi com ele, ambos estudamos nos Estados Unidos numa mesma época, um homem corretíssimo! O próprio general Fernando Azevedo, que foi ministro da Defesa, uma pessoa de imensa integridade, grande liderança! Os três comandantes das Forças todos foram afastados. Não é comum isso. Nunca havia acontecido dessa forma. Portanto, é preciso ter atenção para esse retrocesso 'cucaracha' de voltar à tradição latino-americana de botar Exército envolvido com política. É uma péssima mistura para a democracia. É uma péssima mistura para as Forças Armadas. E eu tenho fé de que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela. Aconteceu na Venezuela: jogar as Forças Armadas no varejo da política e contaminá-las com todas as vicissitudes do varejo da política: da corrupção ao empreguismo. E hoje a Venezuela é uma ruína; é um desastre humanitário".
Barroso lembrou o nome de três generais demitidos e o episódio da destituição dos respectivos comandantes das Três Forças quando Azevedo e Silva saiu. Se o presidente é o que mais emprega militares no Executivo — incluindo o ciclo da ditadura —, é também o que mais submeteu generais à humilhação: onze já foram defenestrados. E todos de modo bastante desrespeitoso, com fritura pública antes, durante e mesmo depois da queda, como aconteceu com Silva e Luna, que presidiu a Petrobras.
O ministro tem razão. É claro que tudo isso é atípico e deve preocupar. Há um evidente esforço de politizar os quartéis. E o protagonista dessa ação deletéria é o presidente. Não fosse assim, e essa nota absurda e infundada não teria vindo a público. E Barroso acerta também quando deixa claro que a Venezuela é hoje governada por um regime militar. Para se manter no poder, Maduro tem de transformar as Forças Armadas em gendarmes da sociedade que atuam em defesa dos próprios interesses. É irrelevante se o viés é de esquerda ou de direita. O fato: exercem a tutela do país.
ELOGIOS
A nota da Defesa é uma provocação -- mais uma, que também busca intimidar o Supremo, que terá que decidir o que fazer com o decreto inconstitucional da graça assinado por Bolsonaro -- absolutamente infundada porque, na verdade, Barroso elogia fartamente o comportamento das Forças Armadas. A meu ver, até exagerou porque não as vejo assim tão profissionais. Afirmou o ministro, depois de lamentar o desfile de tanques nas Praça dos Três Poderes:
"Um fenômeno em alguma medida preocupante, que, até aqui não tem ocorrido, mas que é preciso estar atento, é um esforço de politização das Forças Armadas. Esse é um risco real para a democracia. E aqui gostaria de dizer, por um dever de justiça -- e eu que fui um crítico severo do regime militar; um militante contra a ditadura militar --, nesses 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não se teve notícia ruim e que teve um comportamento exemplar foram as Forças Armadas. Eu gosto de trabalhar com fatos e de fazer justiça. O país apresentou momentos de turbulência -- impeachment do presidente Collor, casos gravíssimos de corrupção, impeachment da presidente Dilma Rousseff, turbulências variadas no mundo, e ninguém cogitou de uma solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Portanto, nós percorremos todos os ciclos do atraso nessas três décadas de democracia. E o desejável é que continue a ser assim. Mas todos nós assistimos a repetidos movimentos para jogar as Forças Armadas no varejo da política. Isso seria uma tragédia para a democracia e seria uma tragédia para as Forças Armadas, que levaram três décadas para se recuperarem do desprestígio do regime militar e se tornarem instituições valorizadas e prestigiadas pela sociedade brasileira".
O ministro foi até benevolente. Houve, sim, alguns episódios nada abonadores, como os tuítes ameaçadores do general Eduardo Villas Bôas, em 2018, exigindo que Lula fosse mantido na cadeia. Mas essa lembrança, neste texto, tem importância apenas lateral. Observem que o ministro elogia os militares. Mas, tudo indica, não da forma como pretendem ser elogiados.
É claro que é preocupante isso a que se assiste no país. O esforço de politização das Forças Armadas está em curso. O espírito de tutela voltou a se assanhar. Se não há espaço para golpe à moda da velha América Latina, isso não implica que estejamos blindados contra a degradação das instituições. Está em todo canto, por exemplo, que os militares apoiaram o decreto da graça a Daniel Silveira, estupidamente inconstitucional, como se isso fosse matéria do interesse dos quarteis.
Parece que o lobo está com sede de sangue, não de água. O cordeiro tentou demonstrar pela lógica que eram falsas as acusações que aquele lhe fazia. Ocorre que o truculento estava em busca de pretextos, não de motivos. É bom que todos tenhamos claro que uma luta dessa natureza não se vence só com bons argumentos. É preciso também mobilização. De acordo com as regras do jogo: a Constituição.
Quem não gosta de regras é o lobo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário