sexta-feira, 22 de abril de 2022

Crime de responsabilidade: entenda ilegalidade golpista do decreto de Jair


Bolsonaro anuncia graça a Silveira. O que Michelle faz ao lado do marido em 
momento tão, digamos, singular é desses mistérios sem segredos.

O presidente Jair Bolsonaro nada entende de perdão, como estamos cansados de saber. Seu negócio e o de sua turma é outro: acusar, excluir, punir. Ele está pouco se lixando para o estatuto da graça ou do indulto. Ele quer é confronto com o Supremo porque entende que este lhe abre, mais uma vez, a oportunidade de um golpe de Estado. Quer ainda mobilizar a sua base e parte do Congresso contra o tribunal. Ele só sabe governar por meio do conflito e do choque. Ou melhor: não sabe — porque governo, convenham, a rigor também não há. Passou a gestão de parte considerável dos recursos para o centrão e se ocupa do proselitismo político. Vai ser reeleito? Não sei. Se acontecer, o que se tem pela frente é ainda mais desastre. O decreto baixado nesta quinta para beneficiar Daniel Silveira não é apenas imoral e golpista. Ele é, sim, também ilegal. Vamos entender.

INDULTO E GRAÇA
Presidentes da República podem, sim, conceder indulto e graça, que são coisas distintas. O primeiro beneficia uma pessoa, é individual; o outro é coletivo. A palavra "graça" aparece no texto constitucional no Inciso LXIII do Artigo 5º, mas na forma de uma vedação, a saber:
"A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem".

Se é pacífico que "indulto" e "graça" não são sinônimos, então é forçoso reconhecer que o Inciso XII do Artigo 84 da Constituição reconhece ao presidente a faculdade do indulto e da comutação de penas, não propriamente da graça. Transcrevo:
"Compete privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei".

Essa "comutação de penas" seria a tal "graça". Constate-se que o constituinte escreveu "graça" quando quis escrever "graça", certo?, a exemplo do que fez no Artigo 5º. De toda sorte, o benefício está previsto no Artigo 734 do Código de Processo Penal, conforme segue:
"Art. 734. A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente."

Os oito artigos seguintes especificam exigências e situações para a concessão do benefício, ficando claro, de modo inequívoco, que o texto, que é de 1941 — anterior à Constituição de 1988, portanto — se refere a pessoas que efetivamente estão presas, o que, obviamente, ainda não é o caso de Silveira.

O indulto, o perdão coletivo — que requer, portanto, a definição de um critério que atenda a um grupo de pessoas — está inscrito nas Constituições desde o Império. A cada ano, da redemocratização a esta data, o presidente da República decreta o seu indulto de Natal. Também pode fazê-lo em circunstâncias especiais. No dia 27 de junho de 1980, por exemplo, o ditador João Figueiredo concedeu indulto a condenados a penas inferiores a quatro anos e reduziu o tempo de penas maiores por ocasião da visita do papa o Brasil.

Fala-se aqui, insista-se, do "indulto", não da graça. Será preciso revirar os alfarrábios para saber a última vez em que o chefe da nação, no Brasil, concedeu o perdão individual. Com absoluta certeza, nunca aconteceu desde a redemocratização. Duvido que tenha se dado durante a ditadura militar. Antes dela, João Goulart, por exemplo, tornou mais severas as regras mesmo para o indulto coletivo. Algum estudioso atento acabará encontrando os momentos excepcionalíssimos em que se usou tal instrumento por aqui. Então falemos do ato ilegal de Bolsonaro.

ATO ILEGAL, SIM!
Segue a íntegra do decreto:
"O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,caput, inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e

Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;

Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;

Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;

Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;

Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e

Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão;

D E C R E T A:
Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos:

I - no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983; e
II - no art. 344 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos.

Brasília, 21 de abril de 2022; 201º da Independência e 134º da República.

JAIR MESSIAS BOLSONARO

Presidente da República Federativa do Brasil"

DESVIO DE FINALIDADE E CRIME DE RESPONSABILIDADE
Bolsonaro recorre a instrumento excepcionalíssimo não com o intuito de perdoar Silveira por seus crimes, mas de afrontar o Supremo. Não se trata de um decreto de graça, mas de um crime de responsabilidade, previsto no Inciso II do Artigo 4º da Lei 1.079, conforme se lê:
"Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:
II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados.

Observe-se, à partida, que, a rigor, Daniel Silveira nem era um condenado porque não se tinha o trânsito em julgado. Ainda cabiam os embargos. "Ah, Reinaldo, mera formalidade! Bolsonaro poderia, então, baixar o seu decreto depois e daria na mesma". Sim. Mas chamo a atenção de vocês para o fato de que essa circunstância evidencia o CLARO DESVIO DE FINALIDADE do decreto. Silveira é o que menos importa: a intenção manifesta é afrontar o Poder Judiciário.

Nas considerações que precedem a decisão, fica evidente que o presidente se considera juiz dos juízes e Poder acima dos Poderes. Por que a "graça"? Ele explica: porque o parlamentar estaria "resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição" e porque "somente fez uso de sua liberdade de expressão".

É exatamente nesse ponto que se escancara o crime de responsabilidade cometido pelo presidente. Ele não está concedendo a graça como um "perdão". Eu diria até tratar-se do contrário: ele está dizendo que Daniel Silveira não cometeu crime nenhum. Até aí, o presidente é livre para pensar o que quiser. Ocorre que não cabe a ele esse julgamento. Bolsonaro e seus "especialistas" evidenciam, assim, a ilegalidade do decreto.

Já há jurisprudência no Supremo sobre a natureza da imunidade parlamentar e os limites da liberdade de expressão. Nem uma nem outra servem ao acobertamento de crimes, e ele próprio, Bolsonaro, é duas vezes réu no tribunal em razão de declarações que deu: por apologia do estupro e injúria.

O dito "Mito" quer impedir o Judiciário de fazer o seu trabalho e abre a porta da desordem. Pergunta-se: enquanto for presidente, vai julgar os juízes sempre que isso for da sua conveniência? A graça, ainda que rara entre nós, deixa de ser um elemento em favor da justiça para se constituir em um instrumento a serviço da impunidade dos amigos do rei.

É preciso lembrar, de resto, as coisas que falou Silveira: réu duas vezes no tribunal, ameaçou os ministros e insuflou atos de violência contra os magistrados — é a chamada "coação do curso do processo" — e pregou abertamente o emparedamento da corte: ameaça ao Estado democrático. Bolsonaro acha que não. E ainda diz que conceder a graça é matéria de "interesse público" — o que, por extensão, tornaria as próprias agressões uma espécie de patrimônio coletivo a ser preservado.

PRISÃO, CASSAÇÃO DO MANDATO, INELEGIBILIDADE
Antes da intervenção ilegal e criminosa de Bolsonaro, a confusão já era das boas. Estava em debate -- e já há recurso no Supremo para tratar do assunto -- a quem caberia, na prática, cassar o mandato de Silveira. Mais: seguindo o Artigo 15 da Constituição, a condenação traz consigo, pelo tempo que durar seus efeitos, a suspensão de direitos políticos.

Pois bem: a graça concedida por Bolsonaro, se for acatada pelo Supremo, pode livrar o dito-cujo da cadeia — "efeito primário" —, mas o que acontece com os "efeitos secundários", como cassação de mandato e inelegibilidade?

O STJ tem uma súmula a respeito: a 631. Está escrito:
"O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais".

Assim, ainda que a aberração bolsonariana prospere, será preciso fraudar também a jurisprudência para que Silveira mantenha o mandato e conserve os direitos políticos.

ENCERRO
Mas o que quer Bolsonaro?

Golpe.

Silveira é apenas o culpado útil da hora.

Imaginem se Lula e Dilma tivessem resolvido conceder graça a alguns dos companheiros condenados. Em vez disso, uma foi impichada sem ter cometido crime de responsabilidade, e outro foi condenado sem provas, passando 580 dias na cadeia.

O decreto é ilegal, imoral e golpista.

Por Reinaldo Azevedo

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