quinta-feira, 21 de abril de 2022

Por 10 a 1, STF decide algo mais importante do que a condenação de Silveira


Alexandre de Moraes e Daniel Silveira: o agora condenado acreditou na sua turma e realmente apostou na impunidade. Quebrou a cara! Imagem: Marcelo Chello/Estadão Conteúdo;Gabriela Bilo-20.abr.22/Folhapress

O julgamento do (ainda?) deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), nesta quarta, é muito mais importante do que parece. Por ampla maioria — nesse caso, de 10 a 1 — está mais do que explicitado o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão e imunidade parlamentar: nem uma nem outra podem tudo. Ninguém é livre para cometer crimes. Ainda voltarei ao ponto.

Por nove votos a dois, o STF condenou Silveira a oito anos e nove meses de prisão — em regime inicialmente fechado — e a 30 dias-multa, no valor, cada um, de cinco salários mínimos (R$ 6.060), o que totaliza R$ 212.100. Os nove ministros determinaram ainda a perda do mandato, o que pode gerar alguma confusão procedimental. Explico em outro post.

NOVE A DOIS
Oito ministros seguiram integralmente o entendimento do ministro Alexandre de Moraes (relator), em consonância, diga-se, com a Procuradoria-Geral da República, atribuindo a Silveira os crimes de "coação no curso do processo" e "atentado ao estado democrático de direito", Artigos, respectivamente, 344 e 359-L do Código Penal.

O que é "coação no curso do processo"? O código explica: "Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral". Lembrem-se de que este senhor era investigado em dois inquéritos: o das "fake news" e o dos "atos antidemocráticos". Ao gravar o vídeo com ameaças a ministros do STF, estava, obviamente, tentando constranger os integrantes da Corte. E, como é sabido, os ataques não se limitaram àquele episódio.

O Artigo 359-L foi incorporado ao Código Penal com a extinção da Lei de Segurança Nacional (7.170), a saber: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". Era o crime previsto no Artigo 18 da extinta LSN. A defesa, diga-se, ainda tentou empregar este truque: como a lei foi extinta, então não haverá mais razão para o processo. Tanto a PGR como o relator afastaram a objeção por motivo óbvio: a tipicidade da conduta apenas mudou de diploma legal. O crime é o mesmo. Seguiram o relator os ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

NUNES MARQUES
Houve duas divergências. Nunes Marques, o revisor do processo, votou pela absolvição do réu, numa das manifestações mais vergonhosas da história do Supremo. Segundo o doutor, Silveira estava apenas exercitando o seu direito de crítica, e suas manifestações estariam protegidas pela imunidade parlamentar. Suas constantes agressões ao Supremo e o claro incitamento à ação violenta contra o tribunal estariam protegidas pelo Artigo 359-T do Código Penal, que define:
"Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.

O voto é de um despudor absoluto. Refresco a memória de Marques com alguns trechos do vídeo de Silveira, coisa que o ministro considera meras "manifestações críticas":

- "Fala, pessoal, boa tarde. O ministro [Edson] Fachin começou a chorar, decidiu chorar. Fachin, seu moleque, seu menino mimado, mau caráter, marginal da lei, esse menininho aí, militante da esquerda, lecionava em uma faculdade, sempre militando pelo PT, pelos partidos narcotraficantes, nações narcoditadoras." - O que acontece, Fachin, é que todo mundo já está cansado dessa sua cara de filho da puta que tu tem. Essa cara de vagabundo, né. Decidindo aqui no Rio de Janeiro que polícia não pode operar enquanto o crime vai se expandindo cada vez mais. Me desculpe, ministro, se estou um pouquinho alterado. Realmente eu tô. Por várias e várias vezes já te imaginei tomando uma surra. Ô? quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte. Quantas vezes eu imaginei você, na rua, levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não. Eu só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda sim não seria crime. Você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível.

- "Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência, após cada refeição, não é crime".

Como se vê, Nunes Marques pertence à escola Silveira de direito. Se estiver certo, podem pipocar amanhã vídeos nas redes sociais propondo que leve uma sova. Segundo ele próprio, não haveria nisso crime nenhum. Recomendo vivamente que ninguém o faça porque seria condenado pelos demais membros da Corte, que salvariam o doutor de sua própria delinquência intelectual e, parece, de sua servidão voluntária ao bolsonarismo.

ANDRÉ MENDONÇA
André Mendonça, o pastor, resolveu andar um terço do caminho e ser morno, razão por que está sendo vomitado por legalistas e bolsonaristas. Entendeu que Silveira praticou apenas o crime de "coação no curso do processo" e o absolveu da imputação de "ameaça ao estado democrático", o que também é uma aberração. Propôs uma pena de dois anos e quatro meses -- que seria cumprida em regime necessariamente aberto -- e uma multa menor.

Os bolsomínions, que esperavam que seguisse a trilha indecorosa de Nunes Marques, estão furiosos. Não teve coragem ir tão baixo. Mas também não se aventurou a fazer a coisa certa.

Quanto à cassação do mandato, o ministro entende que a decisão cabe à Câmara.

O QUE FEZ O TRIBUNAL
O STF já deixou claro, em outros julgamentos, que a imunidade parlamentar, prevista no caput do Artigo 53 da Constituição, não dá a deputados e senadores o direto de dizer qualquer coisa. A proteção existe para tornar o mandato imune a pressões, não para autorizar seu titular a cometer crimes. Assim, ela é um instrumento da representação, não uma licença para a delinquência. Só por isso, diga-se, Bolsonaro é réu no tribunal por incitação ao estupro e injúria. Ele ocupava uma cadeira na Câmara quando dirigiu impropérios contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS). A Primeira Turma decidiu, por quatro votos a um, que a proteção do Artigo 53 não lhe permitia dizer que não estupraria uma determinada mulher porque esta não seria "merecedora".

Desta feita, é o pleno quem diz, por 10 a 1 — e, nesse caso, também se conta o voto de Mendonça: nem tudo é permitido. E o mesmo vale para a garantia contida no Artigo 5º da Carta. Uma opinião pode ser crítica, malcriada, ácida, satírica, jocosa, irônica, estúpida... Mas não tem licença para ser criminosa. Porque, nesse caso, deixa de ser opinião e, se me perdoam a tautologia, passa a ser um crime que pede uma punição.

E como fica o mandato de Silveira? Trato do assunto post seguinte.

Por Reinaldo Azevedo

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