Numa das 953 entrevistas concedidas nos últimos 15 dias, Ciro Nogueira — um dos donos do governo e homem que se apresenta como a alma renovada de Jair Bolsonaro, o refém — disse à Folha que não houve corrupção no Ministério da Educação, em particular no Fundo Nacional para ao Desenvolvimento da Educação, que é um feudo seu. E o fez nestes termos: "É uma corrupção virtual. Existem as narrativas, mas o que foi desviado lá? Não foi pago nada. Não foi empenhado nada". Ele concedeu a nonincentésima quinquagésima terceira entrevista — nesta segunda, deve vir à luz a 954ª — para dizer que "o Bolsonaro de hoje é muito melhor do que o Bolsonaro de 2018" e que "o Lula de hoje é muito pior do que o Lula de 2002". Explique-se: ele foi aliado dos governos petistas e afirmou na disputa eleitoral passada que o seu atual ídolo era "fascista". Mas atentem para a sutileza: ele compara Bolsonaro e Lula com, respectivamente, Bolsonaro e Lula...
Mas voltemos ao ponto. No dia que veio à luz a sua 953ª entrevista, o Estadão trouxe uma reportagem evidenciando que as escolas que seriam erguidas com as verbas do FNDE, que Nogueira controla, estas, sim, são virtuais. O dinheiro não existe nem existirá. Mas verba pública será torrada, ainda assim, aos bilhões.
Saibam: há pelo menos 3.500 escolas em construção no país. Ou melhor: em desconstrução. Estão paralisadas por falta de recursos, sendo corroídas pelas intempéries e engolidas pelo mato. Qual seria a tarefa do governo federal, em particular do FNDE, onde Nogueira bate o chicote? O presidente do fundo, lembre-se, é Marcelo Ponte, seu ex-assessor. Se Bolsonaro der alguma ordem por lá, Ponte o manda comer capim. Nogueira nem precisa bater o porrete na mesa e é obedecido. Ora, havendo recursos, o FNDE deveria liberá-los para que as escolas em construção fossem, então, concluídas.
Que nada! A reportagem informa que deputados e prefeitos anunciam às suas respectivas bases eleitorais a liberação de milhões em recursos públicos para escolas novas que, ATENÇÃO!, jamais serão construídas porque inexiste a totalidade do dinheiro que se anuncia. Totalidade? Há o empenho de uma fração mínima. Caso algo saia do chão, outras centenas ou milhares de esboços de construção se juntarão àquelas 3.500 escolas inacabadas, que representam bilhões de reais deixados ao mato e ao relento.
Reproduzo um trecho da reportagem de Breno Pires, André Shalders e Julia Affonso:
Correligionário de Ciro Nogueira, o deputado Vicentinho Junior (Progressistas-TO) disse aos seus eleitores nas redes sociais que conseguiu R$ 209 milhões para construção de 25 escolas, 12 creches e três quadras poliesportivas para 38 cidades do seu Estado. Deu inúmeras entrevistas sobre a suposta conquista. Os empenhos (reserva) que ele obteve, contudo, foram de R$ 5,4 milhões. Valor equivalente a 2,6% do total. Com essa cifra, não é possível construir uma única escola. É mais uma promessa falsa. O volume de recursos ultrapassa tudo o que o FNDE tem para investir este ano de recursos próprios. Os números do FNDE expõem como funciona o esquema das 'escolas fake'. Faltando oito meses para o fim do governo, foram liberados 3,8% dos recursos previstos para a construção das 2 mil escolas e creches, sendo que 560 obras receberam apenas 1% dos valores empenhados. Neste ano, o fundo tem R$ 114 milhões de recursos próprios. Seriam necessários R$ 5,9 bilhões para as 2 mil novas escolas que se comprometeu a fazer. Além disso, o governo precisaria de mais R$ 1,7 bilhão para concluir as 3,5 mil obras em andamento no País."
Entenderam? As escolas "fake" do esquema de Nogueira — que é um dos homens a quem Bolsonaro hoje obedece — não saem a custo zero. Alguns milhões serão efetivamente torrados. E o risco que se corre é teremos, em breve, não 3.500 esqueletos de escola, mas 5.500. O esquema, no entanto, serve para azeitar a máquina eleitoral, o que é, obviamente, do interesse de Bolsonaro, de Nogueira e dos amigos. Eis o chefe da Casa Civil que, na tal 953ª entrevista, se orgulhou da parceria entre o Centrão e os militares.
ÔNIBUS SUPERFATURADOS
O FNDE, onde se davam as diabruras dos pastores Gilmar Santos e Arílton Moura, é um dos órgãos da administração federal que Bolsonaro terceirizou ao Centrão para se manter no poder. É lá que se organizou um pregão para a compra de 3.850 ônibus escolares ao preço máximo de, atenção!, R$ 2,082 bilhões, embora o cálculo inicial da área técnica do órgão houvesse previsto R$ 1,3 bilhão. Quando reportagem do Estadão noticiou o, digamos, salto, resolveu-se baixar o valor para R$ 1,5 bilhão -- ainda assim, mais de R$ 200 milhões acima do cálculo inicial. Para quem não entendeu: sem o trabalho da imprensa, R$ 700 milhões poderiam ter sido drenados dos cofres públicos. É o que Nogueira, um dos donos do governo Bolsonaro, chama de "corrupção virtual". O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Walton Alencar Rodrigues determinou, no dia 5, a suspensão da compra. Quem cuidou da parte operacional do pregão foi Garigham Amarante, diretor de Ações Educacionais, indicado por Valdemar Costa Neto, presidente do PL -- outro dos sócios do governo Bolsonaro.
Amarante e outro diretor do FNDE — Gabriel Villar (Gestão, Articulação e Projetos Educacionais) — são mesmo prodígios das finanças. Ganham pouco mais de R$ 10 mil por mês. O primeiro comprou um SUV Mercedes-Benz GLB 200 Progressive, avaliado em R$ 330 mil; o outro, um Volkswagen Tiguan Allspace R-Line 2021 de cor branca, avaliado em R$ 250 mil. O homem de Valdemar possui outro SUV registrado em seu CPF: um Hyundai Tucson GLS 1.6, ano 2020, avaliado em R$ 150 mil. As compras, disseram, se deu por meio de financiamento. Caso o leitor se anime em seguir os passos de Amarante, a prestação mensal sai por R$ 10.299,35. Seu salário líquido é de R$ 10.302,16. Com os R$ 2,81 que sobram, dá pra comprar pouco mais de um terço de um litro de gasolina... Prodígios! Villar não é homem nem de Nogueira nem de Valdemar: é uma indicação do Republicanos, outro participante do esquartejamento do governo.
OS CAMINHÕES FRIGORÍFICOS
Uma coisa se deve reconhecer a políticos como Ciro Nogueira, Valdemar Costa Neto, a turma do Republicanos, que é o partido da Igreja Universal. Sentem o cheiro do dinheiro e sabem encontrá-lo. Pouca gente sabe, mas o FNDE também pode financiar, por intermédio das tais "emendas do relator", a compra de caminhões frigoríficos para transporte de merenda. A distribuição de caminhões frigoríficos é garantida pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
"Sob o comando de um afilhado político de Nogueira, o FNDE destinou R$ 4,1 milhões à aquisição de caminhões para 17 municípios. Desse montante, R$ 3,1 milhões (75%) beneficiaram 14 cidades comandadas por prefeitos do PP, o mesmo partido de Nogueira, sendo que nove delas ficam no Piauí."
ROBÓTICA
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, também é personagem da balcanização do governo operado pelo Centrão, conforme revelou reportagem da Folha:
O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) destinou R$ 26 milhões de recursos do MEC (Ministério da Educação) para a compra de kits de robótica para escolas de pequenas cidades de Alagoas que sofrem com uma série de deficiências de infraestrutura básica, como falta de salas de aula, de computadores, de internet e até de água encanada. Todos os municípios têm contratos com uma mesma empresa de aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), responsável por controlar em Brasília a distribuição de parte das bilionárias emendas de relator do Orçamento, fonte dos recursos dos kits de robótica. Cada kit foi adquirido pelas prefeituras por R$ 14 mil, valor muito superior ao praticado no mercado e ao de produtos de ponta de nível internacional."
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
As lambanças a que se refere o texto constitui o que Nogueira chama de "corrupção virtual" do governo. E, convenham, isso é parte do que se consegue saber em um dos órgãos do Ministério da Educação.
Talvez venha daí a certeza absoluta — que, por ora, é pura expressão do desejo — que demonstra este senhor de que Bolsonaro vai ganhar a eleição, hipótese em que o Centrão continuaria a ser a força hegemônica do governo.
O chefe da Casa Civil tem alguma esperança de que um eventual segundo mandato possa ser virtuoso? É claro que não. Até porque o presidente continuaria na sua sanha para esgarçar a democracia, e o Centrão se dedicaria à tarefa habitual de assaltar os cofres públicos. Uma segunda jornada para Bolsonaro também implicaria risco elevado de impeachment — a menos, claro!, que, a exemplo do que ocorre hoje, o governo continue loteado por PP, PL, Republicanos e afins.
Sim, é fato: isso a que se chama Centrão esteve em todos os governos desde a redemocratização. Como conceito, constituiu-se lá no governo Sarney, durante a Constituinte. Mas só com Bolsonaro conseguiu ser a força hegemônica.
Esses valentes não querem nem ouvir falar de Lula — e, a rigor, também não gostam da terceira via ou de Ciro Gomes, mas constatam a óbvia dificuldade que enfrentam — porque têm a certeza de que, se eleito, o petista vai tentar pôr fim ao sequestro do Executivo.
Ciro Nogueira, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e o Republicanos querem manter Bolsonaro no cativeiro. É o refém ideal: baba reacionarismos, arma as crises, faz tolices, e esses valentes surgem como apaziguadores.
Nogueira dará hoje a 954ª entrevista.
Por Reinaldo Azevedo
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