sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Brasil do jeitinho virou um país que não tem jeito



Tem gente furando a fila das vacinas. Pense só nisso por um instante. Esqueça todo o drama da pandemia —o negacionismo, o improviso, a politização da saúde humana, a ameaça de virar jacaré, os mais de 200 mil cadáveres... Esqueça tudo isso. Concentre-se no seguinte: a quantidade de vacinas, que já era pequena, ficou ainda menor diante do tamanho da esperteza de alguns.

Nesta primeira fase da vacinação, deveriam ser imunizados profissionais da saúde, idosos recolhidos em asilos, índios nas aldeias... Os seis milhões de doses já distribuídos serão suficientes para imunizar apenas cerca de 30% desse contingente. Soltam-se fogos pela decisão da Índia de liberar mais dois milhões de doses. Roga-se à China que destrave o envio de matéria-prima para o Butantan e a Fiocruz. A conjuntura é lamentável. Em algumas localidades, virou escárnio.

Em Manaus, cidade onde pacientes de Covid morrem por falta de oxigênio hospitalar, investiga-se o caso de duas irmãs que festejaram nas redes sociais o recebimento da primeira dose da vacina. Elas integram a família controladora de uma das maiores universidades privadas da capital amazonense. Furaram a fila também três prefeitos —um nos fundões de Sergipe, dois no Piauí—; uma secretária de Saúde e o fotógrafo de uma prefeitura pernambucana; servidores municipais de Natal, a capital do Rio Grande do Norte.

Experimente colocar a decisão de furar a fila nas suas circunstâncias. Pense na discussão que antecedeu o gesto. Não ocorreu aos gestores da escassez dizer "quem sabe na vacina a gente não mexe!". Nenhuma voz se levantou para ponderar: "Pessoal, está morrendo gente na linha de frente dos hospitais." O mais trágico não é nem a crueldade. A tragédia está na percepção de que o coronavírus infectou até a sensibilidade humana. O Brasil sempre foi visto como país do jeitinho. Na pandemia, virou um país que não tem jeito.

Por Josias de Souza

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