sábado, 2 de janeiro de 2021

Bolsonaro tem 729 dias para evitar destino semelhante ao do ídolo Trump



Criticado até por bolsonaristas —ora por ter escorado seu mandato no centrão, ora por ter enviado ao STF o doutor Kassio Nunes Marques— Jair Bolsonaro incorporou à sua resposta a legalização do aborto na Argentina. Atribuindo a novidade à volta da esquerda ao poder, sustenta que seus críticos favorecem o retorno do PT, do mesmo modo que fizeram os argentinos ao trocar o ex-presidente conservador Mauricio Macri pela chapa Alberto Fernández—Cristina Kirchner. "É isso o que vocês querem, a volta dessa turma?", provoca Bolsonaro.

O presidente ainda não se deu conta. Mas a analogia portenha perdeu o prazo de validade. Hoje, Bolsonaro precisa comparar-se ao ídolo Donald Trump, não a Macri, um derrotado pré-pandemia. Cavalgando a mesma sensação de invulnerabilidade que acomete Bolsonaro, Trump deixou-se infectar pelo vírus do negacionismo. Graças ao comportamento patológico, ganhou uma internação hospitalar por Covid e perdeu o trono da Casa Branca para Joe Biden, um rival tão carismático quanto uma pedra de gelo.

A partir deste sábado, 2 de janeiro de 2021, Bolsonaro dispõe de 729 dias para colocar em pé uma candidatura à reeleição. Queimou a largada ao retardar a compra de seringas e vacinas contra a Covid-19. De resto, já não pode fazer a mesma pose da campanha de 2018, pois virou-se do avesso no primeiro biênio do mandato. Vendera-se ao eleitorado como um político antissistema, anticorrupção e pró-liberalismo econômico. Hoje, está acorrentado ao sistêmico centrão, chefia uma organização familiar com a imagem rachadinha e dá de ombros para a agenda de reformas liberais do seu ministro da Economia, Paulo Guedes.

Especialista na fabricação de crises, Bolsonaro descobriu aos solavancos que o Planalto é a morada dos extremos. É o céu e o inferno. O concreto e o abstrato. A força e a impotência. A Presidência é um jarro transparente. Muda de cor conforme o conteúdo que se lhe despeje. O jarro do capitão está pela metade. Em janeiro de 2019, quando assumiu, tinha uma coloração de novidade. Hoje, tem a tonalidade crepuscular do lusco-fusco.

Bolsonaro chegou ao Planalto com duas bolas na marca do pênalti da popularidade: a Lava Jato e a perspectiva de crescimento econômico. Fez vários gols. Todos contra. Na economia, entregou um pibinho de 1,4% no primeiro ano de governo, quando ainda não havia coronavírus. Na política, verificou-se que sua cruzada anticorrupção era de vidro, e se quebrou com o desembarque de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

Hoje, Bolsonaro mantém uma improdutiva parceria com o centrão. Há mais "toma lá" do que "dá cá". A distribuição de cargos assegurou uma momentânea blindagem no Legislativo, mas não impulsionou a agenda de reformas liberais no Congresso.

O tapete do governo tornou-se pequeno. O chorume que escorre pelas bordas inclui um ex-vice líder com dinheiro na cueca, dois filhos acusados de rachadinha (pode me chamar de peculato), um operador de rachadinhas em prisão domiciliar, dois líderes no Congresso investigados por corrupção, a companhia de uma primeira-dama com uma interrogação de R$ 89 mil na conta bancária, e o apoio a um réu na disputa pela presidência da Câmara.

O odor do melado vinha sendo encoberto pelo aroma do auxílio emergencial da pandemia, que caiu de R$ 600 para R$ 300. E foi extinto em 31 de dezembro. O compromisso de Bolsonaro com a austeridade fiscal é desafiado pelos pendores populistas do presidente. A recessão da pandemia elevou o número de desempregados para mais de 14 milhões de pessoas. O interesse pelas reformas é cadente.

O senso comum supõe que a Presidência pode tudo. Mas a verdade é que o presidente é como folha de árvore, sujeita aos humores de cada estação.
Sob holofotes, diz que faz e acontece. Terceiriza responsabilidades. Na solidão de sua poltrona, é governado pelo acaso. E rala os efeitos corrosivos da pandemia. À luz do sol, arrota independência. À sombra, prepara uma reforma ministerial para saciar apetites fisiológicos.

A Presidência é, fundamentalmente, aquilo que seus titulares fazem dela. Ao refugar a intransferível responsabilidade de presidir a pandemia, recusando-se a instalar em Brasília uma coordenação nacional da crise sanitária, Bolsonaro cedeu nacos autoridade a estados e municípios. Ao sabotar o trabalho de governadores e prefeitos, revelou uma falta de rumo. Ao retardar uma vacinação que seus próprios assessores econômicos apresentam como pré-condição para retomada plena do crescimento, tomou o rumo do brejo. O mesmo brejo em que se afundou Trump.

Se o ocaso de Trump teve alguma serventia para Bolsonaro foi para mostrar que qualquer presidente pode reivindicar a reeleição, desde que tenha desempenho para isso.

Por Josias de Souza

Um comentário:

AHT disse...

A História é uma expectadora fiel e curte registrar reprises. Povos quando desprezam suas memórias e suas lições de acertos e erros, tendem a reprisar mais aos erros do que aos acertos.

A Alemanha é uma referência de recuperação. Guerras e o terrível nazismo a assolaram. Foi capaz e se levantou forte.

Há, porém, países de curtos avanços e demorados abraços com os seus passados de erros e crises. O Brasil é um desses.