quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

A diplomacia que mata



Está certo que Brics, na maior parte do tempo, foi mais uma sigla do que uma aliança concreta. Originalmente representando Brasil, Rússia, Índia e China, a sigla foi inventada por um economista britânico, Jim O’Neill, para designar o grupo de países emergentes com mais chances de se tornarem ricos e influentes.

Que formassem um grupo, era duvidoso, dadas as notórias divergências entre, por exemplo, Índia e China, ou Rússia e China, sem contar que o Brasil não parecia ter qualquer proximidade com aqueles três.

Num dado momento, entretanto, com o Brasil sob governo petista, surgiu um interesse comum entre aquelas nações em fazer um contraponto à influência americana, principalmente, e europeia, em segundo lugar. Seria a voz mais importante do mundo emergente.

O grupo se formalizou diplomaticamente, incorporando a África do Sul, para ter um representante daquele continente. De uma coisa meramente retórica, de mais discurso e menos ação, evoluiu para algo mais prático, especialmente com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, chamado banco do Brics, para financiar projetos em comum. Banco que é hoje presidido por um brasileiro, o economista Marcos Troyjo, indicado pelo governo Bolsonaro.

Tudo isso para dizer que as circunstâncias abriram uma enorme possibilidade para o Brasil — não aproveitada. Dos membros do grupo, um, a China, era não apenas o principal parceiro comercial do Brasil, como um dos maiores produtores mundiais de medicamentos e insumos. A Índia, há anos, cravou posição como a maior produtora de genéricos e também de insumos farmacêuticos. A Rússia, em reconstrução, não havia perdido a capacidade tecnológica, inclusive nas ciências biológicas e médicas.

O Brasil tem dois institutos com reconhecimento mundial na produção de vacinas, o Butantan e Manguinhos.

Todo mundo sabia disso quando se iniciou a pandemia. E a oportunidade estava na mão: uma boa articulação permitiria que Brasil, China, Índia e Rússia se organizassem para produzir e distribuir vacinas em larga escala, com financiamento de seu próprio banco.

China, Índia e Rússia entrando com a tecnologia e as fórmulas; Brasil, com sua capacidade de produção e seu imenso mercado, estendendo-se para o Mercosul e toda a América Latina.

Mas isso jamais passou pela cabeça do presidente Bolsonaro e de seu chanceler, Ernesto Araújo. Nessa cabeça, a China é um bando de comunistas, que produz vacina para destruir o mundo ocidental. A Rússia, bem, seja o que for, não é amiga dos EUA. A Índia, do direitista e populista Narendra Modi, até poderia ser próxima, mas o país tem uma diferença histórica com os EUA.

Sendo a maior produtora de genéricos, a Índia sempre teve interesse em limitar as patentes farmacêuticas, dominadas pelas grandes farmacêuticas americanas e europeias.

Por isso, em meados do ano passado, a pandemia crescendo, a Índia propôs na OMS que as patentes de medicamentos relacionados à Covid-19 fossem temporariamente suspensas.

Trata-se de uma controvérsia. A patente, o direito exclusivo de explorar a venda de um medicamento, é um estímulo importante para que as farmacêuticas invistam bilhões de dólares na busca de uma nova substância.

Mas faz tempo que o mundo, incluindo governos e setor privado, está debruçado na busca de arranjos legais que permitam conciliar a patente com a distribuição de medicamentos para as nações mais pobres.

A calamidade da pandemia justificava esse esforço. Só que o Brasil de Bolsonaro seguiu fielmente os EUA de Trump e votou contra a suspensão temporária de patentes da Covid, deixando Índia, principalmente, e China enfurecidas.

A retórica antichinesa de Bolsonaro e sua turma terminou o serviço.

Se não fosse o governador João Doria, o Brasil não teria vacina alguma.

Agora, Bolsonaro implora os medicamentos de Modi e tem vergonha de pedir os insumos chineses, esperando que Doria resolva o problema. A vacina “chinesa assassina do Doria” vira a vacina do Brasil, na nova mentira bolsonarista, tentando salvar o que não pode salvar: o fato de que ele desprezou o sofrimento e boicotou a vacina.

Uma diplomacia pragmática salvaria milhares de vidas. Essa outra matou.

Por  Carlos Sardenberg

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