quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Michelle espalha intolerância após esconjurar demônios na igreja de Pádua


Michelle cochicha ao ouvido do marido durante culto na igreja de que Guilherme de Pádua, assassino de Daniella Perez, é pastor Imagem: Douglas Magno/AFP; Reprodução

Michelle Bolsonaro, a primeira-dama, anda caçando o diabo ou à caça do tinhoso, não se sabe bem. E foi encontrar seu "deus", de onde conclamou a luta contra maligno, na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Afirmou, no culto, com inspiração muito particular, que, antes de Bolsonaro, o Palácio do Planalto era consagrado aos demônios. É uma gente que não consegue conviver com adversários, associando-os ao mal, mas que pode abrigar assassinos desde que convertidos à sua fé. A Igreja da Lagoinha é aquela que abriga o ex-ator Guilherme de Pádua, que matou a atriz Daniella Perez. Ele se tornou pastor em 2017 e já participou de uma manifestação golpista em favor do presidente em 2020.

Para esses valentes, os seus são sempre bons, não importa o que façam ou tenham feito. Os outros, independentemente da obra, são sempre maus. Veem a religião como uma milícia, não como o exercício do amor de Deus. Será que exagero? Então vamos ver.

Um perfil de apoio à Michelle compartilhou nas redes sociais um vídeo que associa religiões de matrizes afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, às "trevas". A postagem inicial foi feita pela vereadora Sonaira Fernandes (Republicanos-SP). As imagens mostram o ex-presidente Lula durante um ritual, realizado no ano passado, em Salvador. No texto, a vereadora afirma que Lula "entregou sua alma para vencer essa eleição".

Escreveu ainda: "Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã." O perfil compartilhou esse post e escreveu: "Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!". Recebeu likes e respostas de bolsonaristas fiéis.

Discurso de ódio, preconceito, ignorância, truculência e racismo. Sonaira deve ignorar que o cristianismo já foi uma religião minoritária. Mais do que isso: foi clandestina — como, diga-se, as religiões negras tiveram de ser no Brasil. Saberá ela por que o peixe era uma espécie de senha empregada pelos primeiros cristãos? Ela e Michelle estão ocupadas demais discriminando o outro para ter tempo de aprender alguma coisa.

ÓDIO E PRECONCEITO MATAM
Essas mensagens todas deveriam ser banidas das redes sociais, e seus autores, punidos com suspensão ou exclusão. Não exercitam a liberdade de expressão. Reivindicam a primazia da opressão. Ao associar os adversários ao demônio, pretendem eliminar aqueles que não pertencem à sua turma. O deputado Pastor Feliciano teve a audácia de comentar: "Crente que vota nesse homem [Lula] é apóstata da fé; é fazer pacto com o maligno". É claro que está associando uma religião de origem africana ao diabo

E quem o faz? É o pardo — segundo designação do IBGE — Feliciano! Há sangue negro nas suas veias. E não! Ele não está obrigado a cultivar uma religião de origem africana em razão da cor de sua pele. Mas a Constituição impõe que respeite a fé alheia e a diversidade religiosa.

Lembro a Feliciano: entre as mortes violentas intencionais — homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial —, 78% foram de negros e 21,7% de brancos. No Brasil, 56% da população é negra, segundo o IBGE. No caso das mortes pela polícia, a diferença é ainda maior: 84% dos alvos são negros. Em 2021, este índice apresentou queda de 31% entre a população branca, mas cresceu 5,8% entre os negros, em comparação ao ano anterior.

DE VOLTA A MICHELLE
Michelle estava agastada porque foi muito criticada quando resolveu falar, lá na igreja em que Guilherme de Pádua ministra seus ensinamentos cristãos, sobre os demônios que teriam habitado o Palácio do Planalto antes de Bolsonaro. E resolveu, então, produzir um pouco mais de trevas. Lula participou, de fato, de um ritual do candomblé na Bahia. Mas, como o vídeo deixa evidente, não se discriminava nem se atacava ninguém; não se fazia política rasteira.

A cerimônia está relacionada à chamada "Irmandade da Boa Morte". E uma das mulheres presentes evoca Exu. Em razão de uma mentira miserável, o orixá é, muitas vezes, associado ao diabo do cristianismo. Exu é só o mensageiro, que faz a comunicação entre os homens e o mundo espiritual. Mas foi tomado como ente maligno pela violência do colonizador, pela estupidez e pelo preconceito. Lastimo, adicionalmente, que essa gente confunda seus ódios com a fé cristã. Inexiste cristianismo onde há intolerância.

A mulher que fala com Lula identifica a Irmandade da Boa Morte. Irmandades eram grupos religiosos formados por escravos, muitas vezes segundo seus respectivos ofícios. Adotavam o cristianismo, mas o fundiam com a religiosidade oriunda de suas comunidades originárias, ou das de seus ancestrais. Essa irmandade, a primeira de mulheres negras, faz referência à Nossa Senhora da Boa Morte.

A fé sem informação, sem reflexão, sem temperança e sem tolerância se converte em fanatismo e extremismo. E estes são sempre instrumentos facilmente manipuláveis por oportunistas.

Para terminar com um pouco de luz, transcrevo a letra da música "Milagres do Povo", de Caetano Veloso. Trata da violência da escravidão e de como os negros, trazidos à força, fizeram desta a sua terra, indo além da dor. E a religião é um dos elementos a plasmar uma identidade para aqueles que, então, já eram do Brasil, sem que o Brasil lhes pertença ainda hoje em dignidade e direitos.

"O grande vencedor se ergue além da dor".
*
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória
E paira para além da história

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar, Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá

É no xaréu que brilha a prata luz do céu
E o povo negro entendeu que o grande vencedor
se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente

Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar, Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá

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