sábado, 1 de outubro de 2022

Lula fez o certo. Ou: Da arte de censurar a vítima e aplaudir o agressor



Escrevi há pouco no Twitter que também vou abrir uma empresa de um só — eventualmente convidando a minha mulher para sócia, e já sei que ela vai recusar —, especializada em avaliar a "opinião dos indecisos". Criarei um método e me tornarei o maior especialista do mundo na minha própria invenção. E sairei por aí a pontificar sobre o que pensa essa notável categoria.

Desde já, fico cá a pensar onde se acha o indeciso exemplar. Na composição das amostras de institutos de pesquisa que realmente existem — não os levantamentos "delivery" de pilantras —, a definição das proporções, como se sabe, interfere no resultado. Como é que se chega ao grupo de indecisos que representa, por amostragem, todos os indecisos? Não tentem me explicar porque a pergunta é meramente retórica. Sei que é impossível.

Aí vem essa conversa torta de que os indecisos criticaram o dito "descontrole" de Lula ao reagir a um sujeito fantasiado de padre, que estava presente ao debate numa dobradinha óbvia com Jair Bolsonaro, comportando-se como candidato laranja. E, então, ancorando-se na opinião de "indecisos exemplares", faz-se a crítica fácil: "Ah, Lula perdeu pontos ao reagir etc." Quais pontos? Quantos pontos? Parem, para princípio de conversa, de tentar emprestar uma inflexão científica ao mero opinionismo. Até porque, se bem me lembro, o petista foi criticado por não ter reagido com a devida dureza aos ataques que sofreu no debate na Band. Ademais, o falso padre era só a expressão mais burlesca do embate dos "seis contra um".

Não fiz a conta, razão por que a afirmação que segue é uma impressão — mas eu digo ser impressão, não uma contabilidade que ambiciona ser uma ciência. Tenho, pois, a impressão de que há mais "especialistas em debate" (outra categoria metafísica) a censurar Lula do que a apontar o comportamento obviamente fraudulento de uma fraude. O embusteiro trocou papeis mais de uma vez com o genocida, além de cochichos, e isso se deu aos olhos de todos, sem qualquer constrangimento. Não teve nenhuma vergonha de parecer o que de fato era. Mas quem recebe as reprimendas maiores? Lula, é claro!, em razão de seu suposto descontrole.

É que Sua Excelência o Indeciso Exemplar gostou mesmo daquele momento em que candidatos de si mesmos faziam digressões impossíveis sobre o nada porque, afinal, aquilo pareceu bastante propositivo.

Obviamente eu não serviria para ser político, ou a coisa ficaria ainda mais quente, o que me exporia à crítica dos especialistas na própria opinião. Assistindo ao debate com a minha família, exaltei, vejam vocês, o sangue frio de Lula. E ainda acrescentei: "Ele não precisaria estar ali". Eu mesmo, em seu lugar, não iria para um massacre anunciado, que regra nenhuma consegue conter porque a especialidade de certa canalha é justamente ignorar as regras do jogo e, como é sabido, da própria democracia. Mas aí grita uma outra "doxa" que dispensa provas: "Ah, se não debate, não quer prestar contas". É mesmo? O que fazia ali o cara de bandana? Prestava contas? Tenham paciência!

Não estou me opondo à existência de debates. Apenas digo o que eu faria, sem fingir que pratico ciência. Estou certo de uma coisa: se o mediador é uma espécie de juiz para garantir as regras e acusar as faltas e se há até um VAR (a equipe que avalia direito de resposta), então é preciso ter o poder para expulsar do jogo quem comete a falta digna de cartão vermelho. Não estou censurando William Bonner porque, certamente, essa possibilidade não constava da combinação prévia. Logo, ele não tinha como mandar embora o "padre de festa junina" — "olha cobra..." — sem transgredir o combinado. Ocorre que a moral dos pilantras permite que façam o que a moral dos juízes isentos os impede de fazer.

Olhem aqui: o bolsonarismo perverte de tal maneira a verdade que leva a que se fustigue a vítima em benefício do agressor. Esse é o mesmo juízo que poupa o assediador e censura a mulher de minissaia. É como se dissessem: "O papel do agressor, afinal de contas, é agredir. Quem tem de se virar é a vítima. Afinal de contas, se quer andar com essa roupa, tem de saber enfrentar as consequências". Ou ainda: "Um negro vítima de racismo tem de se comportar de modo esperto. Em vez de reagir, tem de fazer der conta que nada aconteceu. Um negro não pode cair nas provocações de um racista".

Esse coro a censurar Lula por seu suposto descontrole é o coro que culpa as vítimas e, ainda que não queira, aplaude a eficácia do agressor.

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