sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A saturação do abuso da fé


Bolsonaro (PL) assistiu à missa ao lado de Tarcísio (Repubicanos) e o prefeito de Aparecida do Norte, Luiz Carlos de Siqueira — Foto: Caio Guatelli/AFP

Bolsonaro (PL) assistiu à missa ao lado de Tarcísio (Repubicanos) e o prefeito de Aparecida do Norte, Luiz Carlos de Siqueira — Foto: Caio Guatelli/AFP

Dos muitos abusos cometidos pela campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro — político, econômico, legislativo, de fake news e desinformação —, certamente o abuso da fé dos eleitores é dos mais lamentáveis. Ele atingiu o ponto em que se volta contra o candidato nesta quarta-feira, 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, com as cenas de hooliganismo protagonizadas por seus apoiadores no Santuário dedicado à padroeira do Brasil.

Depois de um primeiro turno colado a lideranças evangélicas como Silas Malafaia, levado nas asas da FAB até para a também ruidosa passagem de Bolsonaro pelos funerais da rainha Elizabeth II, o presidente resolveu tentar se aproximar dos católicos no segundo turno.

A primeira incursão foi no Círio de Nazaré, a maior celebração de fé católica do Brasil, que reúne mais de 2 milhões em Belém, no Pará, e que tem como tradição o caráter apolítico. A presença de Bolsonaro foi vista com desconforto pela Igreja. A Arquidiocese de Belém divulgou nota esclarecendo que o convite não partiu dela e que não desejava nem permitiria uso político da festividade. Já em Belém, o presidente postou em suas redes uma homenagem ao “Sírio” de Nazaré, deixando patente sua falta de familiaridade com o que representa o Círio.

Da mesma forma, a contrariedade da Igreja com a tomada de Aparecida por bolsonaristas agressivos, ostentando bandeiras e toalhas com a cara do mito no lugar de símbolos religiosos e hostilizando jornalistas ou os identificados como possíveis eleitores de Lula, ficou patente nos sermões de padres e do arcebispo Dom Orlando Brandes, que na homilia lembrou a necessidade de o Brasil vencer os “dragões” do ódio, da fome e do desemprego. Ele também cobrou a necessidade de definir uma “identidade religiosa”, clara alusão a Bolsonaro usar ora as denominações evangélicas ora o fato de ter sido criado na fé católica para acenar a ambos os públicos.

As pesquisas mostram o predomínio de Lula no eleitorado católico na inversa proporção do de Bolsonaro sobre os evangélicos. Portanto a polarização que assola o Brasil, mina o debate, aumenta a violência política e ameaça a democracia se travestiu também em guerra religiosa.

Não parece ser uma estratégia inteligente, que denote compreensão rudimentar do que significa religiosidade, promover invasão a um santuário a que os fiéis comparecem com o único propósito de externar sua devoção e agradecer ou pedir por uma graça de Nossa Senhora.

A simbologia é especialmente importante quando se adentra o campo espiritual. E as cenas de profundo desrespeito com um feriado santo desgastaram Bolsonaro junto a um eleitorado em que ele já não tinha grande entrada. Se não produziram a abertura de caminhos ao candidato do PL junto aos católicos, as aparições atabalhoadas e oportunistas do presidente em eventos muito importantes para esses fiéis tampouco foi bem-vista entre os evangélicos, que passaram a ver com desconfiança o fato de o presidente participar de homenagens a santas, uma das muitas divergências profundas que existem entre protestantismo e catolicismo.

A exploração da fé já foi muito além do razoável nesta campanha. O ponto mais baixo foi o culto em que Damares Alves fez graves acusações de atrocidades cometidas contra crianças e reportadas a seu ministério — que ela agora tenta reembalar dizendo se tratar de denúncias antigas que “todo mundo fala” na fronteira dos estados da Região Norte.

É tão escancarado o abuso da (boa) fé dos fiéis para fins políticos que parece ter atingido o ponto de saturação. As cenas de Aparecida se mostraram um tremendo desgaste para Bolsonaro. Que sirvam para que ele se modere, como sempre na marra e depois de exorbitar os limites.

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