sábado, 1 de outubro de 2022

Debate reflete a miséria da campanha (Editorial da Globo)



O presidente Jair Bolsonaro usou o debate entre os candidatos a presidente na TV Globo, na noite de anteontem, para levantar suspeitas de que seu principal oponente, o ex-presidente Lula da Silva, foi o “mentor intelectual” do sequestro e assassinato do petista Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André (SP), em 2002. Disse mais: que, segundo essa versão fantasiosa, Lula pagou “milhões” para que não fosse envolvido nas investigações.

Trata-se de gravíssima acusação, que não encontra qualquer respaldo no resultado das investigações da polícia – que, como se sabe, concluíram que se tratou de crime comum. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que a campanha bolsonarista retirasse do ar um site que disseminava mentiras sobre o suposto envolvimento de Lula no crime. Bolsonaro, no entanto, reviveu o caso para insinuar que Lula mandou matar seu correligionário e amigo para esconder escândalos de corrupção do PT.

A esta altura, o comportamento imoral do atual presidente da República já não deveria surpreender ninguém, mas Bolsonaro, em sua melhor forma, conseguiu se superar. Para isso, contou com a ajuda inestimável de um exótico candidato que se apresenta como “padre” e que só estava ali para lhe servir de escada na tentativa de transformar o debate em briga de rua – situação em que o bolsonarismo joga em casa.

Que fique claro: este jornal não esquece – e muito menos aprova – o modo como os petistas trataram todos os seus oponentes desde a fundação do partido. Quem já foi vítima da máquina de destruição de reputações do PT sabe bem o que é ser acusado leviana e insistentemente do que não fez. Não se trata, portanto, de ter qualquer condescendência com Lula da Silva, mas, se queremos uma democracia saudável, é preciso haver limites – e Bolsonaro, como sempre, os superou.

Em princípio, um debate serve para que candidatos exponham suas ideias e contestem as dos concorrentes. É claro que não se deve esperar um encontro sereno e educado, exatamente porque a política é, por definição, um embate apaixonado de visões divergentes de mundo. Além disso, esses eventos televisivos há muito tempo deixaram de ser meras oportunidades para a exposição de propostas e se transformaram em ocasiões para que os candidatos se desconstruam mutuamente, expondo fragilidades alheias e dando aos erros dos adversários uma dimensão muito maior do que têm na realidade. “Vence” o debate, portanto, aquele que sobreviver à saraivada de críticas e portar-se, tanto quanto possível, como um imperturbável estadista.

Se esse é o parâmetro, Bolsonaro perdeu o debate e o pouco que ainda lhe restava de decoro. Para os bolsonaristas, no entanto, o presidente “venceu”, porque inundou o debate com um aluvião de desinformações – em tamanha quantidade que seria humanamente impossível responder uma a uma. Esse foi o método com o qual Bolsonaro venceu a eleição de 2018, ao transformar a realidade numa colagem de mentiras, induzindo o eleitor a acreditar no que não via e a desacreditar do que via. É assim que vicejam os autocratas populistas.

Quem se dispôs a ficar até de madrugada assistindo ao deprimente pas de deux entre o presidente da República e o “padre de festa junina”, como bem o definiu a candidata Soraya Thronicke, ainda pôde testemunhar o esforço dos candidatos Simone Tebet e Ciro Gomes para discutir algo assemelhado a um programa de governo. Obviamente ninguém se lembra do que eles disseram, porque as atenções do País foram capturadas pela truculência e pela mendacidade de Bolsonaro. Se o presidente esperava reduzir sua imensa rejeição entre os eleitores, resultante em larga medida de sua incapacidade de entender a democracia, a estratégia certamente fracassou.

O “padre” de fancaria foi o menor dos problemas do debate de anteontem. Sua participação, de certa forma, coroou a miséria propositiva desta corrida eleitoral, em especial por parte dos líderes das pesquisas. Resta torcer para que o País possa testemunhar uma campanha mais madura em 2026.

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