É preciso que a imprensa, muito especialmente a mais combativa na defesa da democracia e da Constituição — e se destaque que inexiste "outro lado" audível nesse caso —, não acabe fazendo, por excesso de temor ou de zelo, o jogo do inimigo. A que me refiro?
Tomemos cuidado com um conjunto de antevisões e de considerações que acabam por naturalizar o golpe, como se este fosse mesmo possível ou sustentável. Possível, vá lá, porquanto não se trate de uma impossibilidade determinada pela natureza, até é. Mas, então, é preciso que se parta para a etapa seguinte: existe ambiente, aqui dentro e lá fora, para que uma junta de fardados, tendo um ogro como sua face visível, assuma o comando do país e dite, de baioneta na mão, o destino da nação?
Falemos um pouco da questão interna. Ainda que se desprezassem todas as outras variáveis que nos dizem que 2021 — ou 2022 — não é 1964, restaria um dado que é insuperável por tanques, baionetas e cavalariços assanhados. Há 57 anos, deu-se um golpe inequívoco para derrubar um governo, que tinha, como é próprio do presidencialismo de viés populista, a marca do personalismo. Em seu lugar, entrou o regime sem rosto.
Ainda que os generais da ditadura tenham testado, em alguns momentos, um ou outro gestos de apelo popular, sabia-se que vigorava o regime. Não era o poder de um homem. Entre nós, a ditadura não se personalizou num Augusto Pinochet, por exemplo. A dita "revolução" veio para instaurar o que se entendia por "ordem" na relativa desordem. Os militares, então, se apresentavam como "o sistema" ordenador contra a pretensa bagunça promovida pelos civis.
E agora? Bem, Bolsonaro está testando as possibilidades de um autogolpe, de que as Forças Armadas seriam elementos meramente instrumentais. Ele pretende usar Exército, Marinha e Aeronáutica como forças de ataque contra seus adversários e a serviço do poder unipessoal, coisa que 1964 não logrou fazer. Nesse sentido — vejam a insanidade! —, ele estaria mais para o Getúlio Vargas do Estado Novo do que para qualquer dos generais da ditadura instaurada em 1964. Mas ele é "o" homem?
Cumpre perguntar: as circunstâncias políticas no país autorizam a emergência desse líder? Em nome do quê? De qual, vá lá, "projeto"? Além de tentar proteger a si mesmo e à família e de tentar escapar da herança fanaticamente homicida de seu governo, sobre quais bases se estruturaria a ditadura? Ainda que a corrosão nas Forças Armadas seja óbvia, evidente, escancarada — em seu processo alucinado de colonização do governo —, será que se chegaria a alguma forma de normalidade na economia?
NO MUNDO
Agora olhemos um pouco para fora. Bolsonaro é hoje o líder político mais desprezado da Terra. Tinha dois aliados retóricos ao menos: Donald Trump, no gigantesco EUA, e Benyamin Netanyahu, no minúsculo -- mas muito influente -- Israel. Ambos foram banidos do poder. Ninguém quer falar com Bolsonaro. Ninguém dá bola para Bolsonaro. Ninguém consegue levar a sério Bolsonaro.
Uma quartelada transformaria o país, a despeito de sua importância estratégica como exportador de alimentos, num pária. Ernesto Araújo, o ex-chanceler, não via nisso, claro!, um problema. Ao contrário: ele até se orgulhou. Mas há interesses legítimos da parte produtiva do capital no acordo do Mercosul com a União Europeia — que hoje já enfrenta dificuldades — e na entrada do país na OCDE. Como republiqueta golpista, que queima a Amazônia? Acho que não...
O que fariam os golpistas? Enviariam uma comissão de generais, brigadeiros e almirantes para missões no exterior? Tentariam demonstrar que, bem, fecharam o Congresso e prenderam os ministros do Supremo porque essas foram precondições necessárias da... Da... Do... De quê mesmo? Seria impossível responder.
Aquele Brasil de há 57 anos estava dividido em relação ao governo legal de então, ele próprio fruto de uma crise gerada por golpistas malsucedidos. Substituí-lo não foi assim tarefa tão difícil num momento convulsionado do mundo e da América Latina. Tanto é assim que o golpe contou com aquilo que hoje não teria — muito pelo contrário: a anuência e o suporte objetivos dos EUA.
OS BRAGAS E OS BAPTISTAS
Assim, quando Braga Netto, ministro da Defesa, articula aquela nota pusilânime, assinada pelos três comandantes militares, cumpre que, junto com o repúdio, nos indaguemos: "Muito bem, senhores, qual será a etapa seguinte? Mandar prender senadores? Cercar o Supremo? Suspender as eleições, como quer Bolsonaro?"
Mais prudente e correto, creio, é nos lembrarmos de que, durante a permanência do general da ativa Eduardo Pazuello à frente da Saúde, quem realmente chefiou a política do governo federal no combate à Covid-19 foi o agora ministro da Defesa, Braga Netto. Sua nota serve mais como um ato de força para tentar se proteger do que como o indício de um golpe em curso.
Quanto a Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, dizer o quê? É o tiozão de uniforme das redes sociais. Bolsonaro vocaliza todos os seus reacionarismos e preconceitos, e ele acha que pode pôr a Força que comanda a serviço da ameaça.
LEVAR A SÉRIO?
É claro que é preciso levar a sério tanto a nota golpista como a entrevista destrambelhada do tal Baptista. Mas é preciso que as coloquemos na dimensão do abismo com o qual essa gente flerta, evidenciando a sua irresponsabilidade, não como um futuro possível para o Brasil.
"Ah, Reinaldo, mas e aquela história de que o Artigo 142 da Constituição daria aos militares o direito de intervir, sem que a ação fosse chamada de golpe?"
Isso é uma bobagem e um delírio. Até porque o ato estaria, por obvio, sujeito ao escrutínio do STF, que já se manifestou a respeito. "Ah, mas e se os armados não aceitassem o veto do STF?" Bem, então estariam dando um golpe em sentido clássico. E isso nos devolve ao começo da história: alguém acha mesmo que isso é possível?
Aos quase 535 mil mortos por Covid-19 de agora, quantos milhares de outros os nossos patriotas estariam dispostos a fazer na base da bala?
Para sustentar o poder de Bolsonaro, o governante mais isolado da Terra?, o que não duraria uma semana e ainda levaria todo mundo para a cadeia?
Insisto: é mais fácil apostar numa aposentadoria rechonchuda do que numa aventura sangrenta e sem futuro
Por Reinaldo Azevedo
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