Uma continha simples evidencia como dois anos e sete meses de Jair Bolsonaro podem representar um atraso de quase 60, especialmente quando um general obtuso e autoritário, como Braga Netto, confunde as Forças Armadas com milícias a serviço do mandatário de turno.
Quando se realizarem as eleições de 2022, já serão 33 anos de pleitos diretos em todos os níveis. Antes destes dias tenebrosos que vivemos, não ocorreu a ninguém ameaçar as urnas, pouco importando quem pudesse ser o vencedor. O tempo de democracia eleitoral plena, pois, já é maior do que aqueles 29 sem disputas presidenciais. A disputa anterior a 1989 havia se dado em 1960, quando Jânio Quadros se elegeu presidente, e João Goulart, vice. Mas que se note: sob a influência propriamente da ditadura, foram 25 anos sem eleição. A prevista para 1965 foi suspensa, e se instaurou o voto indireto.
Não é impressionante? Caso Braga Netto tivesse condições de levar adiante o seu intento, o país recuaria 57 anos no tempo, lá ao longínquo 1965.
MILITARES COMO VÍTIMAS? ORA..
A conversa de que um ingênuo Braga Netto acabou sendo enredado pelo centrão, que estaria malignamente se articulando para tirar do poder os pobres militares patriotas, é conversa para lustrar coturno. A ameaça aconteceu. Se o general resolveu tirar o centrão para dançar e acabou tropeçando nas próprias pernas, isso se deu em razão da sua atabalhoada incompetência e da sua truculência. Os que lhe deram um olé não têm nada com isso.
"Ah, mas por que isso vazou só agora e não antes?" Pelas razões pelas quais cada coisa vaza no seu tempo. É claro que há sempre gente jogando xadrez. Essa questão é irrelevante. O que importa é saber se a ameaça aconteceu ou não. E aconteceu. Aliás, Braga Netto não consegue disfarçar o intento nem na nota em que nega o arreganho autoritário. Escreveu:
"Em relação à matéria publicada em veículo de imprensa, no dia de hoje, que atribui a mim mensagens tentando criar uma narrativa sobre ameaças feitas por interlocutores a Presidente de outro Poder, o Ministro da Defesa informa que não se comunica com os Presidentes dos Poderes, por meio de interlocutores.
Trata-se de mais uma desinformação que gera instabilidade entre os Poderes da República, em um momento que exige a união nacional.
O Ministério da Defesa reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro dos limites previstos na Constituição. A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições nacionais, regulares e permanentes, comprometidas com a sociedade, com a estabilidade institucional do País e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro.
Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias.
A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo Governo Federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema."
A nota é falaciosa. O processo de escolha é transparente. O sistema é auditável. Que outro ministro da Defesa, nas democracias mundo afora, entrega-se a essas considerações? Se o ministro conclui que "compete ao Parlamento brasileiro decidir", então que o deixe decidir. E vai. Acredito que sua colaboração será inestimável para enterrar de vez a tolice autoritária da volta do voto impresso. "Autoritária por quê?" Porque é evidente que Bolsonaro pretendia usar as urnas físicas, caso perdesse a eleição, para questionar o resultado. Como fez Trump, seu amigão. E, naquele caso, porque não existe voto eletrônico.
Parece que há gente com o coração partido porque a coordenação política do governo vai para as mãos de Ciro Nogueira, uma das pérolas do centrão. O meu se conserva intacto. Sai de lá um general que comandava tropa até outro dia: Luiz Eduardo Ramos. Continuará fora do lugar na Secretaria-Geral da Presidência, mas é algo menos deletério.
SIMPATIA NEGATIVA PELO CENTRÃO E REPULSA AO GOLPISMO
Vá pesquisar tudo o que já escrevi sobre o centrão e sobre a eleição de Lira. A minha simpatia pelo grupo é negativa. Quando menos porque, por óbvio, desconfio de quem nunca é oposição, sempre governo. O próprio Nogueira, como vimos, chamava Bolsonaro de fascista há pouco mais de três anos e dizia que Lula havia sido o maior presidente da história do Brasil. Agora, vai compor o núcleo duro não só do esforço para Bolsonaro se segurar no poder como da sua tentativa de reeleição.
Ocorre que tenho repulsa por golpistas. Os próceres do centrão chegam ao poder pelo voto. E pelo voto podem ser tirados. Com os militares, é diferente. Não são eleitos por ninguém e, em alguns casos, ameaçam suspender o próprio pleito. Acreditam que podem tutelar a sociedade brasileira. Uma coisa é enfrentar politicamente forças que você repudia. Outra, muito distinta, é ter de correr para não ser preso por fardados a serviço de tiranos ou de tarados morais.
Sim, uma parte do centrão vai tentar segurar a onda de Bolsonaro para mantê-lo no poder. Vai se esforçar para tentar reelegê-lo. Quem quer Bolsonaro impichado ou quem não quer um segundo mandato, o que seria um desastre, que se organize segundo o seu intento: mas dentro das regras do jogo.
Braga Netto tentou enquadrar o centrão e foi enquadrado por ele. Deu-se mal. Isso, em si, é uma boa notícia. Contra o centrão, é possível se mobilizar inclusive em praça pública. Já os golpistas querem pôr seus adversários na cadeia — no mínimo.
Não é assim tão difícil saber qual é o mal menor. Garantida a democracia, que cada um busque seu sonho.
Este sábado é um bom dia para começar. Ou para continuar na luta. Agora, também contra o golpe.
PARA ENCERRAR
O general Hamilton Mourão -- ele foi eleito --, vice-presidente da República, disse a coisa certa sobre eleições e golpe:
"É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos República de banana. Lógico que não tem espaço para um regime autoritário. Que regime autoritário? O Brasil é um país... A sociedade brasileira é complexa. Acontece que tem muita gente ainda na sociedade brasileira que está olhando pelo retrovisor; olha 50, 60 anos atrás, sem entender o processo histórico que nós estamos vivendo."
E assim voltamos ao começo deste artigo.
Por Reinaldo Azevedo
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