Há coisas que "pegam" e coisas que "não pegam", independentemente de serem ou não verdadeiras — e, por óbvio, cumpre acrescentar aqui: "infelizmente!" O ideal seria que toda verdade "pegasse" e que a mentira jamais prosperasse. Mas fiquemos no campo das verdades. Há coisas muito graves que, às vezes, não são assim sentidas pela população. E há os momentos formadores de consciência em que a gravidade e a devida percepção se juntam. Especialmente quando aqueles que são alvos de uma evidência tenebrosa nada têm a dizer a não ser a perplexidade acuada.
Assim é com as reportagens de Juliana Dal Piva publicadas no UOL. Elas trazem à luz gravação em áudio em que Andrea Siqueira Valle, irmã da segunda mulher de Bolsonaro, Cristina Siqueira do Valle — a mãe de Jair Renan, o Zero Quatro —, afirma que o agora presidente Jair Bolsonaro tinha consciência do chamado esquema da rachadinha, praticava-o ele mesmo e chegou, vamos dizer, a punir com a "demissão" um cunhado, irmão de Andrea e Cristina. André teria atuado como funcionário no gabinete do próprio Bolsonaro, mas se negaria a devolver a parte combinada do salário.
Andrea revela a sua própria condição de fantasma do gabinete de Flávio quando deputado estadual. Lá ficou para, de mentirinha, receber o salário. Ficava com menos de R$ 2 mil, diz ela, e "devolvia" R$ 7 mil ao próprio senador. Mais: a mulher diz poder acabar com Jair, com Cristina, a irmã, e a turma toda.
Só para lembrar: Cristina foi contratada em março como assessora parlamentar da deputada Celina Leão, do PP do DF. O vocação da família Bolsonaro para receber salário do erário é espantosa.
SEM REAÇÃO
A reação do Palácio do Planalto e do próprio Flávio diante das gravações é frouxa, esgarçada, nada diz -- porque, afinal de contas, nada há a dizer.
Em nota, afirma a Secom:
"Considerando que não tivemos acesso à íntegra das gravações divulgadas pelo UOL, mas apenas a trechos fora de contexto, sem mais informações sobre data e hora, não há como nos manifestar. A construção da narrativa, tal qual feita pelo UOL, por meio da divulgação de trechos sem contextualização cronológica parecem ter como intuito induzir o leitor/expectador a conclusões precipitadas por carecer de contexto."
A Secom sabe muito bem que não há contexto que possa mudar o sentido do que lá está registrado. É o que é. E também não há hipótese de a questão não ser investigada.
Na fala de Andrea, aparece um outro "Fabrício Queiroz", só que não com a farda da PM, mas do Exército — ainda que aposentada. Segundo a ex-cunhada de Bolsonaro, um tio seu, chamado Guilherme dos Santos Hudson, também se encarregava de arrecadar a grana dos servidores. Ele a levaria pessoalmente para sacar o dinheiro. O homem é coronel da reserva e foi colega de Bolsonaro na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) nos anos 1970. Como se nota, sempre aparece a farda para honrar as Forças Armadas, né? Estamos diante de uma devastação moral sem precedentes.
A defesa de Flávio se manifestou. Este que escreve é um ardente defensor dos defensores, mas é preciso fazer e dizer a coisa certa. Em nota, afirma:
"Gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é (sic) um expediente compatível com democracias saudáveis. A defesa, portanto, fica impedida de comentar o conteúdo desse suposto áudio apresentado pela reportagem."
Não quer comentar, vá lá, não comente. Mas nada há de errado com o material divulgado pelo UOL, que segue o mais estrito rigor jornalístico. É verdade: não se sabe quem gravou. E daí? Mas se sabe quem fala: e a personagem faz afirmações que apontam para crimes. Não é um "suposto áudio", a menos que estejamos todos loucos. E os advogados sabem que não. Se há coisa que se pode afirmar sobre o áudio, convenha, é que ele é real. O que se tem não entra da categoria de "prova ilegal". A menos que se evidencie que um órgão oficial grampeou Andrea sem autorização judicial. Não parece ser o caso.
Mas dá para entender. O caso Flávio começava a se esconder nas dobras da memória, não é? Agora ele volta com tudo. Sendo como se diz, tendo Andrea estado lotada no gabinete de Flávio entre 2008 e 2018, a quebra de sigilo pode ser um caminho eficaz para tentar rastrear o dinheiro, ainda que, segundo se entende, o vencimento fosse sacado em espécie.
Uma investigação a sério tem de chamar toda essa gente. Ainda que não aconteça, o desgaste continua grande. Claro! Andrea até pode desmentir o que ela própria disse. André, o cunhado que Bolsonaro teria punido por rebeldia por não devolver a parte combinada, pode refugar. Nunca se sabe. Eles têm de saber as consequências caso mintam numa investigação por crime de peculato e lavagem de dinheiro.
As respostas trôpegas da Secom e da defesa de Flávio indicam a gravidade do conjunto da obra.
Venham cá: a ex-cunhada não pode dizer: "Esta não sou eu". É ela. Viesse a público para desdizer o que já se ouviu, quem acreditaria?
O que se tem é um emblema sonoro de quem nos governa e do governo que lidera.
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