quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Novo crime de responsabilidade do necropolítico para quem inexiste a mulher


O presidente Jair Bolsonaro no exato momento em que exortou os brasileiros a deixar de ser "maricas". Ele já havia comemorado o falso insucesso de uma vacina Imagem: Reprodução/TV Brasil

Será sempre precipitado dizer que o presidente Jair Bolsonaro chegou ao limite. Ele o encontrará apenas quando as barbaridades que disser e fizer tiverem de se deparar com as devidas consequências legais.

Na última vez em que contabilizei seus crimes de responsabilidade, eram 16. Depois parei. Tais crimes são punidos pela política. Ele é irresponsável, sim, como se viu mais de uma vez nesta terça, mais não o bastante quando a sua cabeça está na guilhotina: loteou o governo com o Centrão e garantiu, por enquanto ao menos, que está livre de um processo de impeachment.

A sua estabilidade no cargo depende principalmente da economia. A situação não é das melhores. Pesquisas já apontam o aumento do descontentamento da população no momento em que começam a se conjugar a redução do auxílio emergencial com uma brutal inflação de alimentos.

Os eventuais crimes da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) têm de ser apurados. No limite, a questão será resolvida no Supremo porque direitos básicos da população e preceitos fundamentais da Constituição estão diretamente ligados ao desenvolvido de uma vacina. Ainda voltarei ao tema. Cumpre destacar aqui: Bolsonaro cometeu, sim, um novo crime de responsabilidade ao fazer as afirmações que fez.

Despudorado, comemorou o que seria o suposto insucesso da vacina Coronavac e a decisão destrambelhada da Anvisa. Escreveu no Facebook: "Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha." A gramática indica que o texto pode ter sido escrito por Carlos Bolsonaro, o Carlucho.

O presidente está mentindo. Não existe um só caso de morte, invalidez ou anomalia ligado à vacina. Numa solenidade de incremento ao turismo, disparou de dentro do Palácio do Planalto: "Tem de acabar com esse negócio, pô! Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Aqui, todo mundo vai morrer. (...) Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?"

Alguns dos presentes, os canalhas, riram.

Então vamos lá: a Covid-19 já matou, em dados contabilizados, quase 163 mil pessoas. Não dá para saber o número porque uma estranha pane no sistema do Ministério da Saúde impede o registro de vítimas fatais de alguns Estados desde quinta-feira passada.

Não obstante, o presidente comemora o suposto insucesso de uma vacina, agride um adversário seu, conta mentiras sobre o imunizante e ao se referir àqueles que buscam se precaver contra a doença, sapateia sobre uma montanha de mortos e, apelando à misoginia, à homofobia é à truculência mais asquerosa, decreta: são maricas. E como não sê-lo? Ora, ignorando as medidas protetivas e correndo o risco de morrer.

Eis o cara que setores consideráveis da elite houveram por bem apoiar porque teria condições de conduzir o país a um bom lugar. Eis o homem que, nas palavras do ex-procurador Carlos Fernando, que era o número dois da Lava Jato, seria o mal menor para o Brasil. E pensar que Sergio Moro, o pai de todos, agora brinca de alternativa de centro...

As declarações do dia constituem claro crime de responsabilidade — e nem é necessário buscar as digitais do ogro na decisão da Anvisa.

Que outro presidente, a exemplo de Bolsonaro, incidiu de modo tão escancarado no Item 7 do Artigo 9º da Lei 1.079, a Lei do Impeachment. Lá está escrito que é crime de responsabilidade "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".

O que pode haver de mais indecoroso no comportamento de um presidente do que celebrar os percalços enfrentados por um imunizante que pode salvar milhares de vida e que pode devolver o conjunto dos brasileiros a alguma normalidade — ela mesma já bastante anormal em razão da súcia que chegou ao poder?

O que pode haver de mais indigno no comportamento de um presidente do que incentivar a população a um comportamento que ele próprio reconhece ser potencialmente suicida? Pior: associa aqueles que resistem à sua exortação a uma caricatura daquilo que seu entendimento tosco do mundo entende ser avesso ao comportamento masculino. Notem, a propósito, que o presidente se refere apenas aos homens — os únicos que podem ser maricas. No seu universo mental, a mulher nem mesmo existe.

O que pode haver de mais desonroso e desonrado no comportamento de um presidente do que, com o propósito de atingir um adversário político, espalhar mentiras sobre uma droga que pode salvar vidas?

Hoje, aqueles que dão sustentação a Bolsonaro no Congresso, impedindo a formação dos dois terços que deveriam mandá-lo para casa, não são sócios apenas do governo, por intermédio dos cargos distribuídos pelo general Luiz Eduardo Ramos. São também seus parceiros na necropolítica — a política da morte — e, com ele, usam uma montanha formidável de cadáveres como palanque.

Não há esgoto moral semelhante na história do país.

Por Reinaldo Azevedo

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