Está em todo canto que a manutenção do veto de Jair Bolsonaro à lei que punia as "fake news" eleitorais representa uma vitória do ex-presidente e uma derrota de Lula. Sem dúvida, a tese bolsonarista vingou. Pergunto: quem perdeu? "Ora, Reinaldo, se as lideranças do governo tentaram derrubar o veto e só conseguiram 139 votos, havendo nada menos de 317 pela sua manutenção, fica claro quem ganhou e quem perdeu". Na exata medida em que Lula está afinado com os valores democráticos, então, com efeito, ele foi mesmo derrotado. Em companhia do pacto civilizatório.
Que coisa! A criminalização de "fake news" eleitorais era parte do pacote que transferiu, com correções e atualizações, disposições da extinta Lei de Segurança Nacional para o Código Penal. O Título XII do CP, introduzido pela Lei 14.197, de 2021, trata "DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO". Nesse conjunto, por exemplo, encontram-se os Artigos 359 L e M, que punem, respectivamente, tentativa de abolir o estado de direito e de dar golpe de Estado. São duas das principais imputações por que respondem os criminosos do 8 de janeiro e que também colhem o próprio "Mito".
Havia lá o Artigo 359-O, que definia:
"Comunicação enganosa em massa
Art. 359-O. Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa."
Essas e outras mudanças foram aprovadas na Câmara e no Senado, respectivamente, em maio e junho de 2021, em votações simbólicas. Enterrava-se a Lei de Segurança Nacional da ditadura e se aprovava a Lei de Defesa do Estado Democrático — que é, como diz o nome, próprio da era... democrática.
O VETO E SUA ESTUPIDEZ RETÓRICA
Bolsonaro vetou esse Artigo 359-O porque, como o bruto costuma berrar por ai, "fake news não é crime". Orgulhando-se do seu feito, afirmou no dia 14 de setembro de 2021, numa solenidade do Prêmio Rondon:
"Fake news faz parte da nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada? Se não contasse, a noite não ia acabar bem. Eu nunca menti para Dona Michelle".
Os presentes riram às escâncaras. Acharam a piada engraçada.
Na sequência, com ar de vitória e peito estufado, expôs uma tese que se lê hoje em dia, vomitada por certo colunismo identificado com o "extremismo de centro", um bolsonarismo com ambições intelectuais mal digeridas:
Bolsonaro e esses outros delinquentes salta-pocinhas confundem o direito à opinião crítica, por mais azeda e burra que seja, com a licença para "disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". Conhecemos as consequências.
Lula perdeu? "Mais uma derrota do governo?" Houve outros resultados adversos à civilidade política, de que se farta o reacionarismo abjeto, tentando envergar a antiga casaca do "jornalismo crítico", mal disfarçando o misto de burrice, arrivismo e rancor dos vários ciclos golpistas que marcaram a história do país.
Ao justificar, então, o veto, Bolsonaro e seus doutores tentaram parecer sublimes e deram à luz a seguinte ladainha:
"A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um 'tribunal da verdade' para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica. Outrossim, o ambiente digital é favorável à propagação de informações verdadeiras ou falsas, cujo verbo 'promover' tende a dar discricionariedade ao intérprete na avaliação da natureza dolosa da conduta criminosa em razão da amplitude do termo.
A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar."
Notáveis exegetas do caos! Com que então a punição a quem "dissemina fatos que sabe inverídicos e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral" teria o condão de "afastar o eleitor do debate político" e de "reduzir sua capacidade de definir suas escolhas eleitorais", contribuindo para "inibir o debate de ideias" e "limitar a concorrência de opinião"???
É mesmo? Então se deve entender que a indústria de "fake news" serve para aproximar o eleitor do debate; elevar o seu discernimento; aumentar o seu poder de escolha; incentivar o debate e ampliar a pluralidade?
Lula derrotado? O texto, lembre-se de novo, foi aprovado pelo Parlamento em maio e junho de 2021, durante o mandato de Bolsonaro (foi ele a vetá-lo...), quando este tinha maioria no Congresso. O petista havia recuperado a sua elegibilidade em março daquele ano.
CONCLUINDO
Os mesmos criminosos que disseminaram "fake news" sobre a pandemia e as vacinas e em favor do golpe atuaram para espalhar mentiras sobre o Rio Grande do Sul. É neste eloquente mês de maio que se colhe tal resultado no Congresso -- muito mais grave do que a questão da "saidinha" porque mais ideológico.
Prestem bem atenção e comecem a fazer as suas anotações: mesmo na imprensa, multiplicam-se os que passaram a dar piscadelas para teses liberticidas em nome da liberdade. Basta para excitar esses meliantes que se diga: "O governo Lula foi derrotado". E os "extremistas de centro" logo começam a sonhar com um "demiurgo" do nem-nem.
Correm o risco de acordar abraçados a um Bolsonaro de aparência mais moderna, com um discurso mais bem arranjado, mas, ainda assim, de arma na mão. Para esses valentes, é o Supremo que ameaça a democracia, o estado de direito e, como é mesmo?, a "liberdade de expressão".
Afinal, "fake news faz parte da vida". Da vida deles.
Para encerrar mesmo: como o Congresso se negou a tratar do assunto, restará apenas à Justiça Eleitoral, na área que lhe compete, a atribuição de conter os criminosos.
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