sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Lula e Bolsonaro protagonizam um teatro judicial no Supremo



Se o enredo da política brasileira fosse um romance do Século 19, certos insultos só seriam lavados com sangue. Mas Bolsonaro e Lula resolvem suas diferenças na arena do Supremo Tribunal Federal com uma teatralidade que insulta a inteligência da plateia.

Acusado por Lula numa live de beneficiar criminosos, difundir mentiras e tentar um golpe, Bolsonaro interpelou judicialmente o rival. O caso foi à mesa do ministro terrivelmente evangélico André Mendonça. Ele requisitou uma resposta de Lula.

O presidente se pronunciou por meio de uma petição assinada pelo advogado-geral da União Jorge Messias. No documento, o chefe da AGU sustentou que Lula não teve a intenção de caluniar ou injuriar o antecessor.

A manifestação que irritou Bolsonaro foi ao ar em 25 de julho. Nela, Lula disse que o antecessor editou decreto liberando a posse e o porte de armas "para agradar o crime organizado". Afirmou que Bolsonaro "acabou com o Ministério da Cultura porque ele queria criar o Ministério das Armas, o Ministério da Violência, o Ministério das Fake News, o Ministério da Mentira". Referindo-se ao bolsonarismo, declarou: "Eles tentaram preparar um golpe. Sifu". (Assista ao vídeo abaixo)



A interpelação é uma ferramenta jurídica que serve para que o ofendido exija do ofensor a confirmação das ofensas. Dependendo da resposta, Bolsonaro poderia abrir contra Lula uma ação criminal por calúnia, injúria ou difamação.

Antevendo as intenções do adversário, Lula mandou Jorge Messias desconversar. Cumprindo a determinação, o advogado-geral alegou que "não há como inferir das declarações" do presidente "a imputação de prática de crime algum". Alegou que "não existia intento de ofender a reputação (difamação), a dignidade ou decoro (injúria)" de Bolsonaro.

No texto da AGU, as acusações de Lula viraram meras "críticas às políticas públicas adotadas pelo governo anterior". Em relação ao trecho que se refere à tentativa de golpe, anotou-se que Lula usou o pronome e o verbo na terceira pessoa do plural: "Eles tinham..." Ou seja: expressou-se "de forma impessoal, sem personalizar". Alegou-se, de resto, que Lula apenas exerceu seu direito constitucional à "liberdade de expressão".

O advogado-geral anotou a certa altura: "Ora, a livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva."

Todos sabem o que os contendores pensam um do outro. Durante a campanha de 2022, o tratamento mais cortês que Lula mereceu do adversário foi o de "corrupto". Considerando-se tudo o que seu rival fez nos verões passados, Lula soou até ameno na live que abespinhou Bolsonaro.

Ninguém desejaria que a divergência entre ambos evoluísse para a troca de sopapos. Mas Lula poderia ter escorado suas declarações nos fatos incontroversos que recheiam os processos judiciais estrelados por Bolsonaro, reforçados pela recente delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid.

Se o teatro da interpelação judicial e da respectiva resposta serve para alguma coisa é para reforçar a convicção, já tão disseminada na sociedade brasileira, de que a política é mesmo o território da farsa —um palco em que nem os protagonistas se levam a sério.

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