quarta-feira, 31 de julho de 2019

O tribunal de Bolsonaro, os campos de concentração e a apologia da tortura



Vai além da imaginação. Quatro presos suspostamente envolvidos no massacre havido no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, foram assassinados durante a transferência para outros presídios. Vale dizer: a medida adotada pelas autoridades para pôr fim à matança fizeram mais quatro vítimas, debaixo dos respectivos narizes daqueles que deveriam implementar as medidas emergenciais.

O presidente Jair Bolsonaro precisa saber que as palavras de um deputado falastrão do baixo clero, de quem sempre se esperam o pior, o repugnante, o execrável, podem não ter importância. Já as de um presidente da República nunca caem no vazio — ainda que, na alma desse presidente, habite aquele mesmo ser primitivo que antes era tolerado porque, afinal, também a política produz seres exóticos.

Nesta terça-feira, como ficou claro ao Brasil e ao mundo, o presidente da República Federativa do Brasil certificou a execução sumária de 58 pessoas, 16 delas decapitadas, no Centro de Recuperação Regional de Altamira, unidade prisional no sudoeste do Pará. Indagado pela imprensa a respeito das mortes, disparou: 
"Pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham. Depois que eles responderem, eu respondo a vocês".

Era o que tinha a dizer o chefe do Executivo diante de 16 cabeças cortadas, enfiadas num saco plástico, e de corpos carbonizados, frutos do confronto de partidos do crime no interior do presídio. Segundo o que se apurou até agora, o Comando Vermelho disputa o controle do crime no Estado com o PCC, que operaria, no caso, em associação com o Comando Classe A, a que se atribuem as 58 execuções. 

Ao dizer o que disse, Bolsonaro deixou claro que não considerava a ocorrência — que assombrou o mundo com as tintas e o sangue do escândalo — algo grave e que, afinal de contas, fez-se justiça, uma vez que os familiares das vítimas daqueles que morreram teriam recebido, então, uma espécie de compensação.

Tal raciocínio, por óbvio, traz consigo a aceitação tácita dos tribunais informais de julgamento e execução montados pelos partidos do crime dentro e fora dos presídios. Aguarda-se, a qualquer momento, a fala do presidente a elogiar o "micro-ondas" — aquelas piras de pneus em que a Santa Inquisição do crime incinera seus adversários.

O DISCURSO HOMICIDA 
O chefe da nação ignora um dado essencial sobre as organizações criminosas: os presídios são apenas o lugar privilegiado de sua atuação; ali estão, vamos dizer, seus escritórios, sua estrutura burocrática. Os efeitos mais dramáticos e perversos de sua atuação estão fora de lá — vale dizer: na sociedade. 

Nos locais em que o Estado brasileiro não se encontra presente, manda o crime. Se não são os bandidos que já podemos chamar de "tradicionais", há as milícias, já elogiadas em passado não muito distante por pelo menos dois Bolsonaros: o agora presidente e seu filho senador, Flávio.

A resposta técnica que o governo de turno, por intermédio desse inacreditável Sergio Moro, tem para a questão não só mantém intocados esses partidos do crime como reforçam a metafísica que lhes dá sustentação ao investir no encarceramento, sem plano à vista para responder à superlotação dos presídios, aos milhares de detidos em situação irregular — ou porque se ignora a lei de progressão penal ou porque presos provisórios —, à barbárie que hoje submete quase 700 mil pessoas às vontades dos chefes dessas organizações.

Nada disso! Vá ao Youtube e você encontrará vídeos às pencas do então deputado Bolsonaro a vituperar contra aqueles que pregam a humanização dos presídios. Para o então parlamentar, isso era coisa de quem gostava de bandido. Ainda hoje, a sua súcia na Internet sustenta a mesma coisa. Bem, estamos vendo no que dá essa conversa.

Não! Não estou dizendo que Bolsonaro seja o responsável penal ou funcional pelas agora 62 mortes de presos havidas nessa leva recente. Estou, sim, afirmando que ele é a encarnação do discurso e do Estado irresponsáveis, que fingem que ocorrências como essa ou são caídas da árvore dos acontecimentos, nada havendo a fazer, ou foram provocadas pelas próprias vítimas. Na mentalidade do presidente, e isto é explícito, basta que não se cometam os crimes, e nada de ruim acontecerá.

Assim, a paz social seria possível desde que todos fizessem a coisa certa. Como esse Shangri-La continuará a ser mera fantasia de quem não tem o que dizer, então se investe na mais estúpida de todas as escolhas: o mundo do crime seria coisa de criminosos. Eles que se virem por lá. Não é problema nosso. Está aberta a trilha para a barbárie e para a terra dos mortos. Moro acha que dá uma resposta à questão quando vai ao Twitter defender, contra cláusula pétrea da Constituição, prisão perpétua.

IRRESPONSABILIDADE CONTINUA 
Não pensem que o presidente viu a necessidade de ajustar o seu discurso mesmo depois de mais quatro assassinatos. Durante solenidade para marcar a concessão de trecho da Ferrovia Norte-Sul, ele considerou: "Com toda a certeza, deveriam estar feridos, né? É como uma ambulância quando pega uma pessoa até doente, no deslocamento, ela pode falecer. Pessoal, problemas acontecem, está certo?".

É espantoso? É! Mas quem poderia esperar algo diferente? Há evidências em penca de que houve quatro novas execuções. Fosse como diz o presidente, seria ainda pior: nesse caso, a responsabilidade do Estado pelos homicídios seria dobrada: a) porque pessoas morreram sob a sua guarda; b) porque presos, então, em situação extremamente vulnerável deixaram de ter atendimento médico e foram transportados no camburão — que o presidente chama de ambulância.

A UTOPIA 
Como todo homem, Bolsonaro também tem utopias, não é? Uma das suas é esta: 
"Eu sonho com um presídio agrícola. É cláusula pétrea, mas eu gostaria que tivesse trabalho forçado no Brasil para esse tipo de gente. Não pode forçar a barra. Ninguém quer maltratar presos nem quer que sejam mortos, mas é o habitat deles, né?"

Não fica claro o que ele chama, em tom de crítica, de "cláusula pétrea". Parece evidenciar inconformismo que presos não possam ser submetidos ao que chama "trabalho forçado". Notem que ele supõe existir "um tipo de gente" para o qual esse regime seria natural. Que tipo de gente? Os bandidos? Mas os bandidos já conhecem o inferno hoje. É por isso que existem os partidos do crime.

Depois vem à tona um resquício de consciência, digamos, humanista, e ele pondera: "Ninguém quer maltratar presos nem quer que sejam mortos". A frase certamente lhe soou mole demais, humana demais, fraca demais. Então resolveu apelar à oração adversativa para não decepcionar as milícias virtuais e reais às quais fala: "Mas é o habitat deles, né?" 

"Habitat"? Em sentido literal, é "o local ocupado por um organismo, caracterizado por suas propriedades físicas ou bióticas". Como metáfora, é o lugar em que "alguém se sente em seu ambiente ideal".

Na primeira perspectiva, os presos são expropriados de suas características humanas. São de outro espécie. São outro bicho. Na segunda, pertencem a uma outra cultura, que não a nossa. São pessoas já destinadas àquele ambiente. São humanos, mas de outra natureza.

CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO 
Essa é a mentalidade que está na raiz de todos os campos de trabalhos forçados da história, sejam os de concentração dos regimes fascistas, sejam os de Stálin na União Soviética.

Isso implica que não há a menor possibilidade de que Bolsonaro venha, um dia, a fazer ou a dizer algo que concorra para tornar o mundo menos violento ou injusto. Ele governa para aqueles que considera dignos de justiça — e são dignos apenas os que estão adequados à sua visão de mundo ou apresentam como seus aliados. O ódio de Bolsonaro à democracia, à diversidade e aos direitos humanos é profundo, irrefreável e incurável.

Encerro lembrando que inexiste país que submete presos a sevícias, mas trate bem os cidadãos que não são criminosos. Na verdade, o tratamento dispensado aos condenados — até porque estão no último degrau na nossa escala de valores (ou abaixo dela) — serve para medir a adesão de um Estado aos direitos humanos. 

Como é fácil vituperar contra criminosos e mesmo odiá-los, como é compreensível e correto que as pessoas os queiram apartados do convívio social, torna-se fácil submetê-los a maus-tratos sob o silêncio cúmplice dos bons.

E aqueles que se oferecem para ser seus algozes ou que defendem o regime de sevícias nada mais são do que pessoas dispostas a exercer o mal em estado bruto sob o pretexto de combatê-lo. 

A verdade dramática é que o Brasil aboliu a tortura de presos políticos, mas mantém intocado o regime que tortura presos comuns — quase sempre "pretos de tão pobres e pobres de tão pretos".

Escreveu Joaquim Nabuco: 
"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte." 

Acrescentem a tortura à escravidão.

Por Reinaldo Azevedo

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